26 de julho de 2010

A vida não é um programa de TV


Com o advento das tecnologias eletrônicas, o mundo moderno criou o que podemos chamar de mundo virtual. O mundo virtual não é o mundo real, mas está cada vez mais parecido com ele, chegando ao ponto de ser vivido como se fosse o próprio mundo real. É fato que os homens têm acumulado uma enorme variedade de experiências ao longo dos séculos, mas esta última experiência, a do mundo virtual, talvez seja o caso mais exemplar das coisas que não são nem reais, nem verdadeiras. Nenhuma foto ou vídeo pode ser considerado como sendo apenas uma foto ou um vídeo. A tecnologia desenvolveu-se de tal forma que a fidedignidade destes fenômenos é praticamente nula. Será que estamos vendo o que a câmera capturou, ou será que estamos vendo uma versão digitalmente alterada da realidade?

De qualquer forma, toda e qualquer representação digital da realidade não é a mesma coisa que a realidade -- na melhor das hipóteses, não passa de uma representação digital. Ver um filme de um bicho na selva não é a mesma coisa que ver um bicho na selva. Mas as linhas que separam a realidade da representação da realidade estão se tornando cada vez mais tênues e indefinidas.

Contudo, este fenômeno não se restringe apenas ao mundo da computação eletrônica: trata-se do padrão de comportamento humano há muito tempo estabelecido. O Arquimandrita Melécio Webber disse algo muito interessante a respeito da diferença entre o verdadeiro eu humano e o ego humano artificialmente concebido:

"A mente é o sistema defensivo de que o homem precisa para processar todas as informações que recebe. Porém, ao realizar esta atividade, a mente acaba se tornando auto-centrada, julgamental e temerosa. Ela espera que somente o pior virá do mundo, das outras pessoas e, em última instância, de Deus. Todos os detalhes do universo são medidos e pesados pela mente de acordo com a utilidade que trouxerem para a história mental do eu, isto é, para o ego. A mente se esforça para substituir o verdadeiro centro do ser, o coração, por um centro artificialmente criado por ela".

Por conseguinte, segundo a descrição do Pe. Melécio -- que está plenamente de acordo com a descrição dos Padres --, há muito tempo o ego se encontra em um estado de realidade virtual, criando uma história e uma versão de si próprio que não é o verdadeiro eu, mas uma projeção da imaginação, uma distorção criativa.

O mundo digital elevou essa projeção da imaginação e essa distorção criativa de mera auto-ilusão pessoal a uma representação pública. Ele seduz as pessoas para uma realidade que não é de maneira alguma a verdadeira realidade, mas uma representação falsa do eu -- defendida e preservada pela versão digitalizada do eu.

Uma amostra dessa tentação é patente quando constatamos a ânsia que as pessoas têm em ganhar fama mediante as mais variadas formas de mídia moderna. Quem nunca ouviu falar de indivíduos ou famílias tentando entrar em um "reality show" fazendo alguma coisa bizarra? A expressão "reality show" é, obviamente, uma das maiores contradições em termos que existe. Esses "shows" não mostram realidade alguma: tudo o que neles há são falsas projeções e demonstrações de egos artificialmente concebidos.

Você não é um programa de TV.

Evidentemente, quanto mais tempo nosso mundo for impregnado de experiências virtuais, tanto mais propensos estaremos a confundir a verdadeira realidade com as realidades virtuais. Mesmo sem os atuais dispositivos tecnológicos, todos nós estamos imersos em uma espécie de realidade virtual formada pelas histórias, verdadeiras ou falsas, que contamos a nós mesmos e às outras pessoas, na tentativa de conceber, definir e defender a falsa realidade do ego humano.

O ego, na medida em que é definido por si próprio, não é o verdadeiro eu, e jamais poderia ser: afinal, não somos auto-concebidos. A realidade de quem somos -- o sentido e o propósito de nossa existência -- é algo concebido por Deus, pois é Ele quem nos dá existência e propósito. O esforço em nos livrarmos da dependência de Deus é apenas um sintoma do pecado -- não é propriamente um problema existencial.

São Paulo ensinou:

Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra; porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com ele em glória (Colossenses 3:2-4).

Acho que o exercício mais fundamental da vida cristã encontra-se cristalizado nesta exortação de São Paulo. É uma diretriz que nos exorta à autenticidade. O eu implicitamente aludido por São Paulo não é o mesmo ego artificialmente concebido por nós. Não sou definido pelas minhas histórias de abuso ou pela maneira como o público me percebe. Não sou definido por minhas escolhas ou por minha herança genética.

A vida que está "escondida com Cristo em Deus" é a vida que São Paulo descreve em Gálatas 2:20:

Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim.

As falsas concepções do ego -- a realidade virtual definida pelo pecado e pela imaginação -- estão mortas. Elas foram crucificadas com Cristo. A vida que agora vivemos, que é a única vida autêntica, é a vida vivida na fé do Filho de Deus. Quem eu sou é uma questão escondida, uma questão a ser constantemente descoberta na minha vida em Cristo.

Há muito tempo que nutro uma profunda aversão pelas representações do Cristo e das coisas santas no cinema. O poder da imagem virtual facilmente constrói sua própria realidade. Não adoramos o Cristo de Zeffirelli ou as falsas representações da mídia. James Caviezel não é o Cristo. Max von Sydow não é o Cristo.

A Ortodoxia não proíbe imagens -- porém, as imagens da Igreja apontam para seus protótipos. Até hoje, as imagens do cinema raramente apontam para alguma coisa além de si próprias -- freqüentemente apontam para imagens do contexto cultural vigente e contribuem para a contínua e endêmica distorção da fé cristã empreendida pela modernidade.

Conhecer a Deus é uma luta diária. Conhecer o nosso próprio eu também é uma luta diária -- pois somente o encontraremos em Cristo nosso Deus. O verdadeiro eu não é concebido por mim mesmo, mas é um novo homem, concebido à imagem do Cristo. Jamais conhecerei o meu próprio eu a menos que eu conheça a mim mesmo em Cristo.

Eu não sou um programa de TV, e também não sou as falsas versões do meu ego, sejam aquelas que digo a mim mesmo ou aquelas que ouço dos lábios de outras pessoas. Serei conhecido somente em Cristo. Portanto, só conhecerei os outros na realidade de seus seres na medida em que conheço-os em Cristo.

É uma grande bondade em Deus.

Fonte: Pe. Stephen Freeman, da Igreja Ortodoxa de Santa Ana (OCA), Oak Ridge, TN, EUA