27 de agosto de 2008

Epistemologia ortodoxa

Este é o capítulo 6 do famoso Orthodox Psychotherapy, do Metropolita Hierotheos de Nafpaktos, discípulo do Pe. João Romanides.

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A epistemologia é um assunto que pertence a este livro porque está estreitamente relacionada com a cura da alma humana. Os capítulos anteriores mostraram que a queda, a doença e a morte do homem são precisamente a doença de sua alma, seu nous, seu coração e sua razão, os quais são influenciados por pensamentos malignos. A queda é sobretudo a queda do nous. Quando a alma, o nous e o coração são curados, atinge-se o conhecimento de Deus. Na verdade, não é somente quando estão curados que se adquire o conhecimento de Deus, mas também à medida que estão curados. Conforme se curam, atinge-se um conhecimento de Deus que não é constituído de palavras sobre Deus, mas conhece-se o próprio Deus. Em outras palavras, é no coração curado que Deus é revelado e concede conhecimento de Si próprio. Portanto, a epistemologia ortodoxa está estreitamente relacionada com a terapia da alma. O conhecimento de Deus cresce à medida que a cura cresce, e o conhecimento puro de Deus é concedido àquele que foi purificado e curado.

Para que possamos vislumbrar esta questão com mais clareza, convém que nos concentremos nas doutrinas de dois Padres da Igreja: Santo Isaque, o Sírio, e São Gregório Palamás. Primeiramente, versaremos sobre os três graus de conhecimento de acordo com Santo Isaque, o Sírio, e por último sobre o conhecimento de Deus de acordo com São Gregório Palamás.

1. Os três graus de conhecimento de acordo com Santo Isaque, o Sírio

Santo Isaque, o Sírio, desenvolveu o tema dos três graus de conhecimento nos capítulos 52 e 53 de suas Homilias Ascéticas.

Ele começa fazendo um contraste entre conhecimento e fé. O conhecimento humano é marcado pelo fato de que não tem autoridade para fazer nada “sem investigação e exame”, sendo obrigado a investigar se aquilo que deseja é possível (pág. 254). Há uma grande participação da inteligência no conhecimento humano, embora seja sobretudo da inteligência caída, a qual acaba excedendo seus limites naturais; isso quer dizer que a inteligência também domina o nous. A fé, porém, possui outros limites, e é aí que reside seu grande valor e sua diferença em relação ao conhecimento humano. Santo Isaque lembra que a palavra “fé” não quer dizer a mera transmissão de verdades dogmáticas sobre as Pessoas da Santíssima Trindade ou sobre a Encarnação do Cristo, “embora esta fé seja em si muito valiosa”, mas o principal significado daquilo que chamamos de fé é “aquela luz que, pela graça, desponta na alma e fortalece o coração pelo testemunho da mente, tornando-a indubitável pela garantia da esperança”. Essa fé espiritual não aprende os mistérios pela tradição oral, “mas, com olhos espirituais, contempla os mistérios ocultos na alma e as riquezas divinas e secretas que estão escondidas dos olhos dos filhos da carne, mas que são desvelados pelo espírito àqueles que se sentam à mesa do Cristo por meio do estudo de Suas leis” (pág. 262). Isso quer dizer que o conhecimento humano é adquirido pela atividade da inteligência e da investigação humana, enquanto o conhecimento divino é adquirido pela fé. Essa fé é sobretudo aquela que desponta na alma a partir da luz da graça, e, por meio desse poder, aprende-se todos os mistérios que estão escondidos dos olhos do homem carnal. Assim, “a fé é mais sutil do que o conhecimento, assim como o conhecimento é mais sutil do que as coisas tangíveis” (pág. 262). A fé, que é conhecimento divino, é mais sutil que o conhecimento humano.

Santo Isaque explica a diferença entre conhecimento humano e fé. O conhecimento humano é incapaz de aprender sem investigação, enquanto a fé “requer um modo de pensamento mais simples, mais puro e límpido, apartado de qualquer deslize ou invenção metodológica [...] O lar da fé é o pensamento pueril e o coração simples” (pág. 254). O núcleo do conhecimento humano é a inteligência, enquanto o núcleo da fé é o coração simples e ingênuo. O conhecimento humano “confina-se nos limites da natureza” enquanto a fé “viaja para além da natureza” (pág. 254). Ou seja, o conhecimento humano é uma condição puramente natural, que opera dentro de limites naturais, enquanto a fé é uma condição supranatural. O conhecimento humano é incapaz de fazer alguma coisa sem matéria; ele se move no mundo material, enquanto a fé tem autoridade, à semelhança de Deus, para fazer uma nova criação (pág. 254). O conhecimento humano não se atreve nem deseja exceder os limites da natureza, enquanto a fé “os transgride com autoridade” (pág. 255). As vidas de todos os santos demonstram isso. Os santos, pelo poder da fé, “adentraram em chamas, embridaram o poder do fogo e caminharam incólumes por meio dele; e caminharam sobre águas como se estivessem em terra firme” (pág. 255). Todas essas coisas que a fé faz estão acima da natureza e contrárias aos caminhos do conhecimento humano. O conhecimento humano “confina-se nos limites da natureza” enquanto a fé “ultrapassa a natureza” (pág. 255). O conhecimento humano sempre busca meios “para salvaguardar aqueles que o adquiriram”, isto é, sempre procura proteger o homem por meios humanos. Mas a fé deixa isso para Deus. “O homem que reza com fé nunca emprega ou se engaja em caminhos e meios” (pág. 255). O conhecimento humano jamais começa uma obra sem examinar como ela terminará, enquanto a fé diz: “Todas as coisas são possíveis àquele que crê. Pois para Deus, nada é impossível” (pág. 256).

É verdade, segundo Santo Isaque, que o conhecimento humano não é falho em si, mas a fé lhe é superior (pág. 256). O conhecimento é aperfeiçoado pela fé, dado que “o conhecimento é um degrau pelo qual o homem consegue escalar às sublimes alturas da fé” (pág. 257). Quando a fé vem, aquilo que é em parte é abolido. Assim, “é pela fé que aprendemos as coisas que não podem ser compreendidas pelo poder investigativo do conhecimento” (pág. 257). As obras virtuosas da justiça, isto é, o jejum, a caridade, a vigília, a santidade e as “demais obras desempenhadas pelo corpo” e as obras desempenhadas na alma, isto é, o amor ao próximo, a humildade de coração, o perdão “daqueles que pecaram”, a lembrança de boas coisas, a investigação dos mistérios ocultos nas Escrituras, a ocupação da mente com boas obras, o embridar das paixões da alma e as demais virtudes “requerem conhecimento”. O conhecimento “as conserva e lhes ensina sua devida ordem”. E todas essas coisas são degraus pelos quais a alma ascende “às sublimes alturas da fé”. Porém, “o modo de vida da fé é mais exaltado do que as obras da virtude; não são as obras mas o repouso perfeito e a consolação que são consumados no coração e na alma” (pág. 256-7).

Todas essas coisas mostram que, de acordo com a doutrina de Santo Isaque e dos demais Santos Padres, a fé é superior ao conhecimento humano, superior até mesmo ao conhecimento adquirido por meio da prática das virtudes. Pois a fé é uma condição carismática, é comunhão com Deus; é “o entendimento e a visão do coração”; é a vida que se desenvolve na alma a partir do advento da luz da graça divina. Na seção sobre o ensinamento de São Gregório Palamás, analisaremos este conhecimento de Deus que é, em verdade, “comunhão em ser”, é a comunhão e união do homem com Deus. Por isso ele é um conhecimento superior a qualquer conhecimento humano, até mesmo ao conhecimento adquirido pela prática das virtudes, pois nele encontramos o próprio Cristo, que se oculta nas profundezas dos mandamentos.

Santo Isaque, o Sírio, cita três tipos de conhecimento. Vamos examiná-los com mais detalhes, pois creio que assim seremos capazes de diferenciar a tradição ortodoxa da tradição cultural humana, isto é, o conhecimento divino do conhecimento humano.

Há três caminhos possíveis nos quais o conhecimento ascende e descende. Esses caminhos são corpo, alma e espírito (pág. 258). Na verdade, quando os Padres falam de corpo, alma e espírito, eles não se referem às três partes do homem, mas por “espírito” querem dizer o dom da graça, a graça divina com a qual o homem é abençoado. Sem a graça de Deus, o homem é homem da alma ou da carne, enquanto com a graça ele é chamado de homem espiritual. Embora a natureza do conhecimento seja única, ela é refinada e alterada de acordo com as esferas inteligível e sensível (pág. 258). Portanto, assim como há três modos: corpo, alma e espírito, há três tipos de conhecimento que lhes são afins. O tipo de conhecimento que o homem possui demonstrará seu progresso espiritual e sua condição espiritual. Além disso, o tipo de conhecimento que se tem é um indicador da purificação e da cura. Aquele cuja alma é insalubre possui conhecimento corporal, enquanto aquele que está sendo curado possui conhecimento da alma, e aquele que já está curado possui conhecimento espiritual. Este conhece os mistérios do Espírito, que são desconhecidos e incompreensíveis ao homem carnal.

O primeiro conhecimento é adquirido pelo estudo diligente e constante, o segundo conhecimento vem de um estilo de vida bom e puro e da fé mental, e o terceiro conhecimento “é atributo somente da fé. Pois pela fé o conhecimento é abolido, as obras findam e o emprego dos sentidos torna-se supérfluo” (pág. 264).

Com base nos ensinamentos de Santo Isaque, vamos examinar esses três tipos de conhecimento mais analiticamente, procurando identificar neles algo que indique o grau de doença ou saúde da alma humana.

(1) Conhecimento corporal. Alguns dos elementos característicos do conhecimento humano relacionados aos desejos da carne são a riqueza, a vaidade, os adornamentos, o conforto e o apego à sabedoria racional, isto é, à sabedoria aplicável à administração do mundo, às invenções e às artes e ciências (pág. 258). Esse conhecimento é oposto à fé, conforme explicamos acima, porque ele tende a pensar que “todas as coisas existem por sua própria providência” (pág. 258). A sabedoria e o conhecimento das coisas mundanas, na ausência dos outros dois tipos de conhecimento, são inúteis e criam muitos problemas para o homem. Esse conhecimento é superficial e rude, pois está “despido de qualquer preocupação com Deus” (pág. 258). Sua preocupação é com este mundo, e como é controlado pelo corpo, “introduz na mente uma impotência irracional” (pág. 258).

A maior parte dos homens contemporâneos, cujas almas estão insalubres, possui esse tipo de conhecimento e o cultivam sem parar. Toda a civilização contemporânea está nesse estado, o que acaba criando muitas anomalias à alma e ao corpo. Por conseguinte, essa unilateralidade de conhecimento cria grandes problemas. Eis como Santo Isaque os descreve. O homem apegado ao conhecimento corporal é presa da covardia, da tristeza, do desespero, do medo de demônios, da apreensão perante os homens, dos rumores de ladrões e relatos de assassinatos, da ansiedade por causa de doenças, das preocupações com desejos e necessidades, do medo da morte, do medo de sofrimentos, de animais ferozes etc., que, no conjunto, constituem a atmosfera da vida atual (pág. 258). O homem que possui esse conhecimento humano e corporal não sabe como se entregar à misericórdia de Deus, mas tenta resolver os diversos problemas à sua própria maneira. Mas quando se vê incapaz de resolvê-los, então ele “rivaliza com os demais, como se eles impedissem e se opusessem” a esse conhecimento (pág. 258). O homem irrompe com os demais porque eles impedem a posse dos bens do conhecimento corporal.

O conhecimento corporal erradica o amor por completo. Ele faz com que as pessoas examinem os pequenos erros e pecados uns dos outros, bem como suas causas e fraquezas; ele faz com que as pessoas dogmatizem e se oponham mutuamente em palavras, tornando-se maliciosas e motivando-as a desonrar o próximo. Esse conhecimento contém presunção e orgulho (pág. 259).

Está mais do que claro que o conhecimento corporal é característico da civilização contemporânea. Com intuição profética, Santo Isaque apresenta as causas e objetivos desse homem carnal, descreve suas lutas e angústias, e mostra seus terríveis resultados. Distúrbios nas relações pessoais, falta de amor, obstinação e astúcia são algumas das coisas que caracterizam o homem contemporâneo, o qual se encontra doente de alma e apartado de Deus.

(2) Conhecimento da alma. Quando o homem renuncia ao conhecimento corporal e volta-se para os desejos e conversações da alma, então todas as boas obras do conhecimento da alma se seguem. São elas: jejum, oração, misericórdia, leituras das Escrituras, virtudes, luta contra as paixões etc. (pág. 258). Todas elas são aperfeiçoadas pelo Espírito Santo. Elas não surgem pelo poder do homem, mas pela cooperação do homem com o Espírito Santo. Há estágios na aquisição do conhecimento. O segundo grau de conhecimento é aperfeiçoado “quando o homem estabelece suas ações à distância dos homens, lendo as Escrituras e em oração” (pág. 260). Isto é, aquele que possui esse conhecimento vive em quietude, com tudo o que ela implica, conforme descrevemos no capítulo anterior. Ele reza a Deus incessantemente e estuda as Escrituras envolto em uma atmosfera de quietude, para nutrir sua alma, e não para satisfazer sua curiosidade. Nessa categoria estão incluídas as pessoas que estão sendo curadas das úlceras psíquicas e das feridas de suas almas. Essa cura abre as portas para um conhecimento que poderíamos chamar de “estágio preliminar” e “ante-sala” do conhecimento espiritual, o qual a graça de Deus providenciará no coração do homem.

(3) Conhecimento espiritual. Quando o conhecimento humano eleva-se acima das preocupações mundanas e começa a enxergar interiormente “aquilo que está oculto dos olhos”, quando desdenha as coisas “pela qual a perversidade das paixões é despontada”, quando se esforça no desejo em obter as promessas do século futuro, quando se imiscui nos mistérios ocultos, “então a fé absorve o conhecimento, converte-o e engendra um novo conhecimento, a fim de que se torne total e completamente espiritual” (pág. 261).

Dessa maneira, a alma pode voar ao reino dos anjos incorpóreos; ela conhece os mistérios espirituais, o domínio do espiritual e do corpóreo. Ou seja, ela conhece os princípios interiores dos seres. Então, os sentidos interiores despertam e a alma recebe a ressurreição que lhe dará a certeza da ressurreição futura dos homens. Santo Isaque, que possuía esse conhecimento espiritual o qual é a vida de fé, escreveu: “A alma pode, então, pairar nas esferas do incorpóreo e tocar as profundezas insondáveis do mar, meditando nas assombrosas e divinas obras do governo de Deus sobre as criaturas inteligíveis e corpóreas. Ela sonda os mistérios espirituais, os quais são percebidos pelo nous simples e sutil. E depois, os sentidos interiores despertam para os feitos espirituais, de acordo com a ordem que vigorará na vida imortal e incorruptível. Pois desde agora ela recebeu, como em mistério, a ressurreição inteligível enquanto verdadeira testemunha da renovação universal de todas as coisas” (pág. 261).

Esse conhecimento foi possuído por todos os santos de Deus, como Moisés, David, Isaías, o Apóstolo Pedro, o Apóstolo Paulo e todos os santos dignos deste conhecimento perfeito, “no grau possível à natureza humana” (pág. 259). Na verdade, esse conhecimento vem da visão de Deus e da luz incriada, de revelações divinas ou, como diz Santo Isaque, “das diversas contemplações e revelações divinas, das visões sublimes das coisas espirituais e dos mistérios inefáveis...” (pág. 259). Depois, o conhecimento é absorvido por essas visões de Deus e a pessoa sente que não passa de pó e cinzas (pág. 259). Ela adquire o estado abençoado da humildade e da simplicidade. É por isso que o conhecimento espiritual, isto é, o conhecimento de Deus, é fruto da theoria. Ele é recebido pela pessoa que progrediu do conhecimento carnal e do conhecimento da alma ao conhecimento espiritual.

Em suma, podemos dizer que o primeiro conhecimento “confere frieza à alma em relação às coisas de Deus”. O segundo conhecimento aquece a alma “ao nível da fé”. O terceiro conhecimento é descanso do labor, “que é o tipo do século futuro, pois a alma extrai prazer somente na meditação mental sobre os mistérios das boas coisas porvir” (pág. 262).

Esse ensinamento de Santo Isaque é muito relevante para o assunto que estamos tratando, pela seguinte razão. No começo do livro, mencionamos que os membros da Igreja não são divididos entre bons e maus, ou morais e imorais, como se a ética humana fosse o critério, mas entre doentes de alma, os que estão sendo curados e os curados. Estas três categorias correspondem precisamente aos três graus de conhecimento. As pessoas cujas almas estão doentes são pessoas de conhecimento corporal, mundano, as que estão sendo curadas são aquelas que, em diferentes graus, estão adquirindo a sabedoria e o conhecimento da alma, e as curadas são as santas de Deus, que possuem conhecimento espiritual, isto é, o verdadeiro conhecimento de Deus. Hoje em dia, a maioria das pessoas está doente porque não sabe nada sobre o nous e o coração, e, portanto, encontra-se no primeiro conhecimento, o conhecimento carnal. Outras pertencem ao segundo conhecimento porque estão se esforçando para serem curadas pelo método ascético disponível na Igreja Ortodoxa. E os santos, que existem até hoje, pertencem ao terceiro conhecimento porque foram curados de sua doença e, portanto, adquiriram o conhecimento de Deus.

2. O conhecimento de Deus de acordo com São Gregório Palamás
Agora que explicamos o ensinamento de Santo Isaque, o Sírio, sobre os três graus de conhecimento, vamos examinar o que São Gregório Palamás, um santo do Monte Athos, tem a nos ensinar sobre o mesmo assunto. Quando uma pessoa ascende do conhecimento corporal para o conhecimento da alma, e deste para o conhecimento espiritual, ela então vê Deus e possui conhecimento de Deus, que é sua salvação. O conhecimento de Deus, conforme explicaremos a seguir, não é intelectual, mas existencial. Ou seja, todo o ser da pessoa é cheio deste conhecimento de Deus. Mas para alcançá-lo, o coração da pessoa deve ter sido purificado, isto é, a alma, o nous e o coração devem ter sido curados. Abençoados os puros de coração, pois eles verão a Deus (Mateus 5:8).

Examinemos estas coisas mais analiticamente.

Conforme já havíamos mencionado, Barlaam insistiu que o conhecimento de Deus não depende da visão de Deus, mas do entendimento da própria pessoa. Ele disse que podemos adquirir conhecimento de Deus através da filosofia e, portanto, considerava os profetas e apóstolos, os quais viram a luz incriada, como sendo inferiores aos filósofos. Ele ensinava que a luz incriada é, na verdade, sensorial e criada e “inferior ao entendimento”. Porém, São Gregório Palamás, um portador da Tradição e um homem de revelação, defendia uma visão contrária a essa. Em sua teologia, ele apresentou a doutrina da Igreja de que a luz incriada, isto é, a visão de Deus, não é simplesmente uma visão simbólica ou sensorial e criada, nem inferior ao entendimento, mas é a deificação. Através da deificação, o homem passa a ser digno de ver Deus. E essa deificação não é um estado abstrato, mas uma união do homem com Deus. Isso quer dizer que o homem que contempla a luz incriada a vê porque está unido a Deus. Ele a vê com seus olhos interiores, bem como com seus olhos corporais, os quais, porém, foram alterados pela ação de Deus. Consequentemente, theoria é união com Deus. E essa união é conhecimento de Deus. Nesse momento, é concedido à pessoa conhecimento de Deus, o qual está acima do conhecimento humano e acima dos sentidos.

São Gregório explica essa teologia em vários pontos de sua obra. Mas não é nossa intenção fazer uma exposição sistemática de seu ensinamento sobre o conhecimento de Deus e, portanto, nos limitaremos a analisar o ponto central, conforme apresentado em sua obra fundamental “Dos Santos Hesicastas”, conhecida como As Tríades. Cada citação virá acompanhada de sua respectiva referência.

Eis um trecho bem característico: “Aquele que limpou sua alma de qualquer apego a coisas deste mundo, que se apartou de tudo por seguir os mandamentos, e que superou toda atividade cognitiva através da oração contínua, sincera e imaterial, e que foi abundantemente iluminado pela luz inefável em união inconcebível, somente ele, tornando-se luz, contemplando pela luz, na visão e desfrute dessa luz, reconhece verdadeiramente que Deus é transcendentalmente radiante e que está além da compreensão; ele glorifica a Deus não apenas para além do poder do entendimento humano de seu nous, pois muitas coisas criadas estão além disso, mas até mesmo além desta maravilhosa união, a qual é o único meio através do qual o nous se une àquilo que está além das coisas inteligíveis, ‘imitando divinamente os nous supracelestes’” (2,3,57).

O ensinamento central de São Gregório está nesse trecho. Para alcançar a visão divina da luz incriada, a pessoa deve ceifar qualquer conexão entre a alma e aquilo que lhe é inferior e apartar-se de tudo através do cumprimento dos mandamentos do Cristo, transcendendo toda atividade cognitiva “através da oração contínua, sincera e imaterial”. Portanto, ela já precisa ter sido curada, através do cumprimento dos mandamentos do Cristo e da libertação de sua alma de qualquer conexão pecaminosa com as coisas criadas. Ela é iluminada “pela luz inefável em união inconcebível”. Ela vê a Deus através da união. Por conseguinte, torna-se luz e vê pela luz. Ao ver esta luz incriada, ela reconhece Deus e adquire conhecimento dEle, pois agora ela “verdadeiramente reconhece que Deus está acima da natureza e além da compreensão”.

São Gregório também desenvolve este ensinamento em outros pontos das Tríades.

A visão de Deus, a theoria da luz incriada, não é uma visão sensorial, mas uma deificação do homem. Versando sobre a visão divina de Moisés “face a face, e não em enigmas”, São Gregório relembra o trecho em que São Máximo, o Confessor, diz: “Deificação é uma iluminação direta e hipostática, a qual não possui começo mas que desperta naqueles que são dignos algo que excede sua compreensão. É, em verdade, uma união mística com Deus, para além do nous e da razão deste século, quando as criaturas não mais conhecerão a corrupção” (3,1,28;CWS p.84). Portanto, a visão da luz incriada é a deificação do homem. Ele vê a Deus através da deificação, e não através do cultivo da inteligência. A visão da luz incriada é chamada de dom deificante. Não é um dom da natureza humana criada, mas do Espírito Santo. “Por conseguinte, o dom deificante do Espírito é uma luz misteriosa que transforma em luz aqueles que recebem suas riquezas. Ele não apenas os enche com luz eterna mas também lhes concede conhecimento e vida apropriados a Deus” (3,1,35;CWS p.90). Assim, a visão de Deus não é exterior, mas vem através da deificação (2,3,25).

Essa deificação é união e comunhão com Deus. De acordo com São Gregório, “A visão da luz incriada não é uma simples abstração e negação; é uma união e uma divinização que ocorrem misticamente e inefavelmente pela graça de Deus, após a eliminação de tudo o que está aqui embaixo que se imprime no nous; é algo que vai além da abstração (1,3,17;CWS pág. 34f). A contemplação da luz incriada se dá “pela comunhão divinizante do Espírito” (1,3,5;CWS pág .33). “Portanto, a contemplação desta luz é uma união, muito embora não perdure no imperfeito: mas não é a união com essa luz outra coisa senão uma visão?”(2,3,36;CWS pág. 65).

São Gregório fala de êxtase. Mas esse êxtase, na doutrina patrística, não tem nada a ver com o êxtase de Pítia e das demais religiões. O êxtase vem quando, em oração, o nous abandona toda conexão com as coisas criadas: primeiramente “com tudo o que é mau ou ruim, e depois com as coisas neutras” (2,3,35;CWS pág. 65). O êxtase é sobretudo apartar-se das opiniões do mundo e da carne. Em oração sincera, o nous “abandona todas as coisas criadas” (2,3,35;CWS pág. 65). Esse êxtase é superior à teologia abstrata, isto é, à teologia racional, e pertence somente àqueles que atingiram a eliminação das paixões. Mas ainda não é união. Isso quer dizer que o êxtase, que é a oração incessante do nous no qual há lembrança contínua de Deus e não há qualquer relação com o “mundo do pecado”, ainda não é união com Deus. Essa união ocorre quando o Paracleto “ilumina do alto o homem que atinge, em oração, o estágio superior às mais elevadas possibilidades naturais e que aguarda a promessa do Pai, e por Sua revelação arrebata-o à contemplação da luz” (2,3,35;CWS pág. 65). A iluminação por Deus é o que mostra a união dEle com o homem.

Visão, deificação e união com Deus são as coisas que concedem ao homem conhecimento existencial de Deus. O homem passa a possuir conhecimento real de Deus. O dom deificante do Espírito Santo, o qual é uma luz misteriosa, transforma em luz divina aqueles que a atingiram, e não apenas os enchem com luz eterna, “mas também lhes concedem conhecimento e vida apropriados a Deus” (3,1,35;CWS pág. 89). Neste estado, a pessoa possui conhecimento de Deus. Em resposta à doutrina de Barlaam segundo a qual Deus é conhecido pelos maiores contempladores, os filósofos, e que o conhecimento de Deus transmitido “por iluminação noética...não é, de maneira alguma, conhecimento verdadeiro” (2,3,78), São Gregório Palamás declarou: “Deus faz-Se conhecido não apenas por meio daquilo que há, mas também por meio daquilo que não há, por meio transcendente, isto é, pelas coisas incriadas, e também por uma luz eterna que transcende a todas as coisas”. Esse conhecimento, diz ele, é concedido hoje como uma espécie de promessa àqueles que são dignos dele, os quais “são iluminados sem cessar no século sem fim”. Eis porque as visões dos santos são verdadeiras, “e aquele que as considerarem falsas se apartou do conhecimento divino de Deus” (2,3,78). Por conseguinte, aqueles que ignoram e desprezam a visão de Deus são, em verdade, ignorantes de Deus.

Essas coisas mostram que visão de Deus, deificação, união e conhecimento de Deus estão intimamente ligados. Eles não podem ser entendidos isoladamente. Romper essa união distancia o homem do conhecimento de Deus. A base da epistemologia ortodoxa é a iluminação e a revelação de Deus no coração purificado do homem.

Conforme vimos, o conhecimento de Deus está acima do conhecimento humano. A visão da luz incriada supera toda atividade epistemológica e está “além da visão e do conhecimento” (2,3,50). Dado que a visão da luz incriada é concedida aos corações dos fiéis e perfeitos, eis porque “ela é superior à luz do conhecimento” (2,3,18;CWS pág. 63). E não somente é superior à luz do conhecimento humano “dos estudos helênicos”, mas a luz dessa theoria difere-se da “luz que vem das Sagradas Escrituras”, dado que a luz das Escrituras pode ser comparada à “lâmpada que brilha num local escuro, enquanto a visão da luz incriada assemelha-se à estrela da manhã que brilha durante o dia, isto é, o sol” (2,3,18;CWS pág. 63). Por conseguinte, a graça da deificação transcende a natureza, a virtude e o conhecimento humano (3,1,27).

A visão da luz incriada e o conhecimento que dela se origina não são subprodutos do poder racional, não são aperfeiçoamentos da natureza racional, conforme Barlaam afirmava, mas são superiores à razão. É conhecimento concedido por Deus ao puro de coração. Quem quer que afirme que o dom deificante é um desenvolvimento da natureza racional está em oposição ao Evangelho do Cristo. Se a contemplação fosse um dom natural, então todas as pessoas poderiam ser deuses, uns mais, outros menos. Mas “os santos deificados transcendem a natureza”, eles são engendrados por Deus, Deus lhes dá o poder de se tornarem “filhos de Deus” (3,1,30;CWS pág. 85).

A visão da luz incriada, que concede conhecimento de Deus ao homem, é sensorial e supra-sensorial. Os olhos corporais são remodelados, de maneira que possam ver a luz incriada, “essa luz misteriosa, inacessível, imaterial, incriada, deificante, eterna”, esse “brilho da Natureza Divina, essa glória da divindade, essa beleza do reino celestial” (3,1,22;CWS pág. 80). Palamás pergunta: “Tu não percebes que essa luz é inacessível aos sentidos que não são transformados pelo Espírito?” (2,3,22). São Máximo, cujo ensinamento é citado por São Gregório, afirma que os apóstolos viram a luz incriada “por meio da transformação da atividade de seus sentidos, produzida pelo Espírito” (2.3.22).

A visão da luz incriada e o conhecimento que dela se origina transcendem não apenas a natureza e o conhecimento humano, mas também a virtude. A virtude e a imitação de Deus nos preparam para a união divina, mas a união misteriosa é, em si, efetivada pela graça (3,1,27;CWS pág. 83).


Por conseguinte, a deificação, que é o objetivo da vida spiritual, é uma manifestação de Deus ao coração puro do homem. A visão da luz incriada é o que engendra deleite espiritual na alma. Pois, de acordo com São Gregório, a evidência dessa luz é que a alma cessa de entregar-se aos prazeres e às paixões corruptas, adquire paz e quietude de pensamento, repouso e alegria espiritual, desdém pela glória humana, humildade aliada ao regozijo secreto, ódio ao mundo, amor às coisas celestiais, ou melhor, amor somente ao Deus dos Céus, e visão da luz incriada, mesmo que os olhos estejam cobertos ou tenham sido arrancados fora (3,1,36;CWS pág. 90).

Pelo que foi dito, está claro que o fim da cura humana é a visão da luz incriada. Como neste capítulo estamos versando sobre theoria, vale a pena analisar o ensinamento de Palamás de que a theoria possui vários graus. Ele diz que a theoria possui um começo, e as coisas que se seguem a esse começo diferem-se em graus de clareza e escuridão, mas nunca haverá um fim, pois seu progresso, como o da arrebatação na revelação, é infinito. A iluminação é uma coisa e a visão contínua da luz é outra, e ainda outra é a visão das coisas nesta luz, através da qual até mesmo coisas muito distantes são acessíveis aos olhos e o futuro mostra-se enquanto já acontecendo (2,3,35;CWS pág. 65). Há, portanto, graus de theoria e, consequentemente, graus de conhecimento.

Vale a pena examinarmos o ensinamento de São Pedro Damasceno sobre os oito estágios de theoria (Philokalia 3, 108). Os primeiros sete pertencem a este século, enquanto o oitavo pertence ao século futuro. A primeira theoria é o conhecimento dos testes e tribulações desta vida. O segundo é o “conhecimento de nossas próprias falhas e da generosidade de Deus”. O terceiro é o conhecimento das coisas terríveis antes e depois da morte. O quarto é o entendimento profundo da vida experimentada por nosso Senhor Jesus neste mundo e de Seus discípulos e demais santos, isto é, as palavras e ações dos mártires e Santos Padres. O quinto é o conhecimento da natureza e do fluxo das coisas. O sexto é a theoria das coisas criadas, ou conhecimento e entendimento da criação visível de Deus. O sétimo é o entendimento da criação espiritual de Deus, isto é, dos anjos. O oitavo é o conhecimento a respeito de Deus, ou aquilo que chamamos de “teologia”.

Por conseguinte, a theoria possui muitos estágios e graus, e há muito pelo que passar antes da visão da luz incriada, que é “a beleza do século futuro”, “o alimento dos céus”. Entre os graus de theoria estão a lembrança da morte, o qual é um dom de Deus, a oração incessante, a inspiração para cumprir completamente os mandamentos do Cristo, o conhecimento de nossa pobreza espiritual, isto é, o entendimento de nossos pecados e paixões, e o arrependimento que daí se segue. Todas estas coisas só são possíveis por causa da operação da graça divina. A theoria perfeita é a visão da luz incriada, que se distingue em visão e visão contínua, conforme explicou Palamás (3,1,30).

Assim sendo, a purificação que ocorre pela graça de Deus cria as precondições necessárias para se alcançar a theoria, isto é, a comunhão com Deus, a deificação do homem e o conhecimento de Deus. O método ascético da Igreja conduz a este ponto. Ele não está baseado em critérios humanos e não tem por objetivo produzir pessoas “boazinhas”, mas curá-las totalmente e conduzi-las à comunhão com Deus. Se o homem está distante da comunhão e da união com Deus, então ele não atingiu sua salvação. A pessoa espiritualmente treinada que vê a luz incriada está, na linguagem dos Padres, “deificada”. Essa expressão é usada por São Dionísio, o Areopagita, São João Damasceno e, conforme vimos, por São Gregório Palamás (3,1,30;CWS p.85f).

A cura da alma, do nous e do coração conduz à visão de Deus e ao conhecimento da vida divina. Esse conhecimento é a salvação do homem.

Devemos orar fervorosamente para que nos seja concedido alcançar esse conhecimento de Deus. A exortação é clara:

“Vinde, ascendamos à montanha do Senhor, ascendamos até a casa de nosso Deus, e contemplemos a glória de Sua transfiguração, a glória do Unigênito do Pai. Recebamos luz de Sua luz e, de espírito elevado, recitemos eternamente os louvores da Trindade consubstancial”.

Agora levantemos e cantemos:

“Tu foste transfigurado na montanha, ó Cristo, nosso Deus, e mostraste Tua glória a Teus discípulos à medida em que puderam suportá-la. Pelas intercessões da Mãe de Deus, faça Tua perpétua luz brilhar sobre nós, pecadores, ó Doador da luz, glória a Ti”.

(Festa da Transfiguração - Menaion)

Bibliografia:

Gregory Palamas. Triads in Defence of the Holy Hesychasts. Greek text and French tr. J. Meyendorff (Spicilegium Sacrum Lovaniense) 30-31: Louvain, 1973. ET of Triads (selections by N. Gendle), CWS London, SPCK, 1983.

Isaac the Syrian. The Ascetical Homilies. ET Transfiguration Monastery, Boston, 1884.

Orações

a) Em busca de um médico espiritual

“Ó Senhor, Tu que não desejas a morte de um pecador, mas que ele se converta e viva, Tu que vieste ao mundo para restaurar a vida àqueles que estão mortos em pecado e para torná-los dignos de contemplar tua verdadeira luz na medida em que isso é possível ao homem, envia-me um homem que Te conhece, de maneira que, servindo-o e submetendo-me a ele com todas as minhas forças, como a Ti, e fazendo Tua vontade na dele, eu possa agradar-Te, o único e verdadeiro Deus, e para que até mesmo eu, um pecador, seja digno de Teu Reino”.

São Simeão, o Novo Teólogo

b) Por conhecimento de Deus e por amor a Deus

“Torna-me digno, ó Senhor, de conhecer-Te e amar-Te, não com o conhecimento que vem do exercício do nous disperso; mas torna-me digno do conhecimento pelo qual, contemplando-Te, o nous glorifica Tua natureza em visão divina e que rouba a mente do apego ao mundo. Faça-me digno de ser elevado acima do olho perambulante da minha vontade, a qual engendra imaginações, e de contemplar-Te na coação da Cruz, na segunda parte da crucificação do nous, o qual cessa voluntariamente suas imaginações conceituais para repousar na Tua visão contínua, a qual supera a natureza. Implanta em meu coração um aumento do Teu amor, para que ele possa se apartar deste mundo em amor fervoroso a Ti. Desperta em mim entendimento da Tua humildade, com a qual Tu residiste temporariamente no mundo sob o revestimento da carne que suportaste de nossos membros pela mediação da Virgem Maria; que com esta lembrança contínua e leal eu possa aceitar a humildade da minha natureza em regozijo”.

Santo Isaque, o Sírio