26 de dezembro de 2007

A Igreja Ortodoxa em terras germânicas

Todos os anos, o Mosteiro de São Germano do Alaska publica um calendário ortodoxo bastante completo e rigoroso, e que sempre vem acompanhado de um artigo interessante. Em 2006, o calendário veio com a história da Igreja Ortodoxa em terras germânicas, um artigo que certamente interessará a todos os alemães e seus descendentes ortodoxos. Tenho esperança que este relato inspirará a todos os leitores ortodoxos a buscarem nesses desconhecidos santos suas intercessões junto ao Cristo.

* * *

I. A Igreja Ortodoxa no Ocidente

Muitos povos ocidentais, tanto ortodoxos quanto não-ortodoxos, identificam a Ortodoxia com as igrejas nacionais do Leste Europeu e do Oriente Médio. As pessoas que habitam países ocidentais podem não perceber, mas vivem sobre terra santa na qual repousa um vibrante legado cristão que, por séculos a fio, foi idêntico em espírito e praticamente indistinguível na prática do Cristianismo Oriental.

Em maior ou menor grau, o verdadeiro Cristianismo Ortodoxo já esteve presente nas terras onde hoje se fala o idioma alemão, desde os primeiros dias do surgimento de nossa fé até os tempos do grande cisma de 1054. É possível descobri-lo em velhos documentos e estudos arqueológicos e artísticos, mas também é possível experimentá-lo na veneração de relíquias sagradas, onde quer que tenham sido preservadas e honradas, bem como na leitura das vidas dos santos, escritas por seus discípulos e que não foram posteriormente embelezadas.

II. A chegada do Cristianismo

A chegada do Cristianismo em terras germânicas foi um processo gradual, que durou mais de 800 anos. No começo do século I, boa parte da Europa Ocidental era habitada por povos celtas. Os romanos haviam conquistado vastas regiões do continente, começando a fazer incursões na chamada Germania, onde tribos germânicas a haviam colonizado há não muito tempo. Depois que os romanos foram derrotados na Batalha da Floresta de Teutoberg, no ano 9 d.C., seus ambiciosos planos de conquistar toda a Europa Ocidental foram frustrados. Eles tiveram de se assentar à oeste do Reno e ao sul do Danúbio, sendo incapazes de implantar sua civilização na maior parte do que hoje conhecemos por Alemanha. Trata-se de uma informação importante: devido à sua maior acessibilidade, as terras romanas puderam receber o Cristianismo muito antes das germânicas.

Neste artigo, veremos como o Cristianismo Ortodoxo chegou aos países e regiões onde hoje se fala alemão (clique nos mapas ao lado). Devemos ter em mente que esses países não existiam à época do período missionário. Na verdade, tudo aconteceu muito antes que mudanças populacionais, alterações de fronteiras, guerras e desenvolvimentos lingüísticos resultassem na mistura de povos celtas, romanos e germânicos no Ocidente, que falavam o velho francês, e a leste deles uma grande quantidade de reinos que falavam o velho alemão, com o latim sendo usado somente na igreja. E séculos e séculos antes que Alemanha, Suíça, Áustria, Luxemburgo e Lichtenstein surgissem no mapa, mais ou menos com as fronteiras que hoje possuem.

III. O Cristianismo nas fronteiras romanas, na Era dos Apóstolos e Mártires (33-300 d.C.)

Nos primeiros três séculos, o Cristianismo espalhou-se rapidamente por todas as direções, a partir de Jerusalém. Os primeiros apóstolos e seus discípulos transmitiram o que haviam visto, ouvido e experimentado – a vida, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo e Seus ensinamentos. A esperança que isso engendrou naqueles que tocou, juntamente com a vida que os primeiros cristãos levavam, que era bem diferente daqueles à sua volta, foi contagiosa. Em primeiro lugar, ela se espalhou por famílias judaicas de todo o Império Romano para, em seguida, espalhar-se família a família entre os gentios. Da mesma maneira, atingiu regiões do Império Romano conhecidas como Gália (atual França e regiões alemãs do Reno e de Moselle), Nórico (sul da Bavária e norte da Áustria) e Récia (Suíça e partes da Alemanha). Há indícios em muitos locais de que discípulos dos apóstolos foram enviados a esses territórios (ou através deles), embora não tenhamos registros escritos disso. Na Suíça, dizem que São Beato teria sido batizado em Roma pelo Apóstolo Barnabé e enviado em missão à Suíça pelo Apóstolo Pedro. Há tradições similares segundo as quais discípulos do Apóstolo Pedro teriam chegado a Trier e Colônia, na região do Reno.

Muitos cristãos chegaram às fronteiras romanas, tanto como parte do exército quanto como funcionários públicos; outros, ainda, eram comerciantes da Grécia e da Síria. Como havia muitos soldados germânicos (e mesmo comandantes) no exército romano, alguns deles também devem ter adotado o Cristianismo. O primeiro milagre ocorrido num país germânico resultou de orações feitas no exército romano. Em 11 de junho de 172, no atual norte da Áustria, o exército romano caiu numa cilada, ficando sem água num dia quentíssimo, enquanto lutava contra os bárbaros marcomanos e quades. O exército estava para sucumbir ao calor quando, em resposta às orações dos soldados cristãos, Deus enviou uma tempestade que refrescou os romanos e aterrorizou os bárbaros, tendo sido fragorosamente derrotados.

Embora a perseguição aos cristãos não fosse tão feroz no Ocidente quanto no Oriente, havia mesmo assim períodos de perseguição. Em 177, muitos foram martirizados em Lyons (França); é quase certo que havia comunidades cristãs em cidades ao longo do Reno, tais como as cidades (alemãs) de Colônia e Mainz, portanto é muito provável que algo similar lá aconteceu. Perseguições a cristãos também ocorreram durante o governo do Imperado Diocleciano Maximiano (início do século IV). À época, entre aqueles que deram suas vidas pela fé estão São Maurício e a Legião de Tebas, cristãos africanos que foram martirizados na atual Suíça; outros membros dessa legião estavam estacionados em outros locais, incluindo Colônia, Bonn e Xanten (Alemanha); o Mártir Afra de Augsburgo; Santa Úrsula, a mártir-virgem de Colônia, juntamente com seus companheiros; e o Soldado-Mártir Floriano e seus 40 companheiros em Lorsch (Áustria).

A importância que esses primeiros mártires têm na propagação do Cristianismo e na piedade do povo foi enorme. Assim que o Imperador Constantino acabou com a perseguição aos cristãos em 313, igrejas foram construídas sobre os locais onde repousam os mártires, tornando-se pontos importantes de peregrinação. As pessoas neles se ajuntavam em busca de consolação e cura, sabendo que eles eram seus heróis espirituais e que deram seu último sacrifício em sua própria terra.

IV. De Constantino às invasões bárbaras

No começo do século IV, a jovem Igreja era vibrante em termos de fé, mas pequena em número. Ela se fazia representar em todas as cidades do Império Romano, mas as reuniões se davam em igrejas caseiras e eram materialmente pobres – seu clérigo freqüentemente se via obrigado a sustentar-se com empregos seculares. Isso estava para mudar no governo de Constantino. Após ter derrotado Maxêncio em 312, sob o sinal da Cruz que vislumbrara numa visão, ele cessou a perseguição aos cristãos e começou a apoiá-los. Durante sua vida, ele concedeu liberdade, subsídio e imunidade à Igreja, convocando o Primeiro Concílio Ecumênico a fim de estabelecer a unidade entre os cristãos.

Durante alguns anos, Constantino, assim como seu pai, foi chefe da parte ocidental do Império Romano, que tinha a cidade de Trier (Alemanha) como sua capital. É por isso que temos tantos tesouros espirituais nessa cidade. Sua mãe, Santa Helena, tendo viajado à Palestina e descoberto a Verdadeira Cruz, levou um dos pregos da Cruz a Trier. O Bispo Antióquio, a quem ela havia chamado de Antioquia para servir em Trier, adicionou ao tesouro as relíquias do Apóstolo Matias. A cabeça da própria Santa Helena repousa lá, assim como a sandália do Apóstolo André, as relíquias de Santa Ana, mãe da Santíssima Mãe de Deus, e as relíquias de muitos outros santos.

Embora Constantino não tenha forçado ninguém a se converter, o Cristianismo cresceu rapidamente no seu governo e no de seus sucessores. As pessoas eram atraídas pelo santo exemplo dos cristãos e pelo entusiasmo e apoio mútuo em participar de um grupo cristão. Outras causas para as conversões foram a influência de cônjuges cristãos e os muitos milagres – especialmente os de cura – desempenhados pelas orações dos santos e petições nos túmulos de mártires e ascetas.

No entanto, muitos se tornaram cristãos apenas para usufruir dos favores do Imperador, supondo que o batismo seria o passaporte para o poder e a riqueza. Essa “Era da Hipocrisia” durou cerca de 100 anos. E, apesar disso, tornou-se o ímpeto para o movimento mais puro e verdadeiramente ortodoxo da época: o monasticismo.

V. O monasticismo na Gália dos séculos IV e V

No Egito, muitos homens e mulheres reagiram a esse Cristianismo aguado migrando para o deserto, desejosos de preservar o caráter supramundano da fé cristã que haviam experimentado durante os tempos de perseguição. Em pouco tempo, no Ocidente, pessoas de espírito semelhante leram a Vida de Santo Antônio e as vidas de outros habitantes do deserto, ou, como São Cassiano, trouxeram suas experiências pessoais da vida ascética ao Ocidente, escrevendo livros sobre isso. E o próprio Ocidente tinha seus grandes ascetas: São Martinho de Tours (+397) e aqueles que vieram da ilha-mosteiro de Lerins (início do século V); São Romano (+460) e São Lupicínio (+480), que iniciarem-se como eremitas nas Montanhas de Jura, atual França, sendo que lá e na atual Suíça fundaram vários mosteiros. Todas as partes dos futuros países germânicos foram afetadas por esse movimento: os que buscavam a Verdade sabiam aonde ir a fim de dedicarem-se integralmente a Cristo.

VI. As migrações das tribos germânicas e o fim do poder romano

Esse crescimento do Cristianismo Ortodoxo, pelo menos naquilo que afetou as terras germânicas, experimentou um revés severo no início do século V, quando diversas tribos germânicas – por causa de seu crescimento e expansão e do avanço dos ferozes hunos vindos do leste – invadiram o território romano. Primeiramente, tropas romanas foram retiradas da fronteira germânica para proteger Roma; depois, a própria Roma caiu, decretando o fim do Império Ocidental. Tribos germânicas cruzavam os rios Reno e Danúbio. Para os cristãos romanos, a vida estava sob ameaça. Igrejas eram freqüentemente destruídas e substituídas por templos pagãos, enquanto as atividades missionárias praticamente cessaram. Alguns cristãos se retiraram para fortalezas romanas, chegando a construir igrejas em seus interiores; alguns foram mortos; os cristãos na Áustria agüentaram enquanto puderam, fugindo então para a Itália.

Um extraordinário santo, que surgiu nesses tempos turbulentos para guiar e proteger os cristãos romanos que restaram no norte da Áustria e da Bavária, foi São Severino. Ele apareceu numa pequena vila como humilde peregrino e eremita, rezando na igreja local e vivendo na casa de um velho. Numa determinada ocasião, ele exortou todos a jejuarem, rezarem e darem esmola para evitar uma invasão. Quando eles o ignoraram, ele “sacudiu o pó de seus pés” e mudou-se para uma cidade próxima. Mais tarde, aquele velho com quem morara surgiu nos portões da cidade, muito chocado e temeroso – as previsões de Severino haviam se cumprido; seu estalajadeiro foi o único sobrevivente da primeira cidade. Os habitantes da segunda cidade seguiram os conselhos de Severino e foram poupados de semelhante destruição.

Deu-se início a uma extraordinária missão, na qual toda a região buscava o guiamento de Severino para obter segurança e salvação. Ele fundou mosteiros, aconselhou reis, libertou cativos, alimentou e vestiu o povo. Ele sabia quando a luta seria bem-sucedida ou quando seria melhor fugir. Ele ensinou o povo muitas e muitas vezes a confiar em Deus e não em seus próprios poderes, a ser humilde e generoso com o pouco que tinha. No final, todas as pessoas que sobraram foram reunidas numa área e escaparam em segurança para a Itália.

Também houve mártires de Cristo assassinados pelos bárbaros invasores; conhecemos alguns pelo nome, como os São Crescêncio, São Teonesto, Santo Áureo e São Máximo, todos de Mainz.

O bispo e alguns cristãos permaneciam nas grandes cidades. Eles comumente transmitiam a cultura romana aos bárbaros, e foram respeitados por isso. No entanto, na ausência de militares e funcionários públicos romanos, os bispos assumiam cada vez mais tarefas seculares, resultando numa queda do nível de espiritualidade.

VII. A conversão dos francos

A tribo germânica dos francos vivia nas proximidades, e depois dentro, das fronteiras romanas. Muitos francos serviram no exército e no governo romano, até mesmo em altos cargos. Após o colapso do Império Ocidental, no século V, os francos deram início ao domínio do resto da Gália. Deu-se início ao que poderíamos chamar de “conversão reversa”: ao invés dos conquistadores imporem sua religião à população celto-romana, os francos absorveram e imitaram sua cultura e religião. No começo, isso significava adicionar os deuses romanos aos seus; depois, alguns se tornaram cristãos no governo de Constantino; e , finalmente, no batismo de Clóvis em 498/499, um grande número de seguidores de Clóvis voluntariamente o seguiram nas águas do batismo, e muitos o fizeram mais tarde.

A conversão de Clóvis foi muito significativa para as tribos germânicas que estavam localizadas nas áreas que nunca haviam sido conquistadas pelos romanos. Quando as conquistas de Clóvis continuaram, incluindo grande parte da atual Alemanha e partes da Áustria, abriram-se as portas para ações missionárias nessas regiões, já que estavam sob a proteção de um governador cristão.

VIII. Missionários da Gália

Os primeiros a chegarem nesse novo território missionário foram monges e padres do reino dos francos ocidentais, que haviam sido menos afetados pelas invasões. Do final do século VI até a metade do século VIII, eles restabeleceram o Cristianismo ao longo do Reno, levando-o, pela primeira vez, a outros territórios. Entre eles estavam o Santo Bispo Everglésio de Colônia e São Goar, também do Reno; Santo Emerão, Santo Erhard e São Corbiniano, na Bavária.

IX. Os missionários irlandeses

Na mesma época, missionários irlandeses começaram a chegar. A Irlanda, que nunca havia sido conquistada pelos romanos nem pelos invasores germânicos, recebeu o Cristianismo no século V, principalmente pelas mãos de São Patrício. Corajosos, cultos e extremamente disciplinados em seu asceticismo, os monges irlandeses chegaram ao continente individualmente ou em pequenos grupos, a partir do século VI.

Alguns se assentaram nas florestas, em cavernas ou em ilhas, tornando-se eremitas locais ou santos. Em muitos casos, apenas seus nomes são conhecidos. Outros, como São Columbano, fundaram mosteiros de grande importância. (Ele e seus doze companheiros fundaram três mosteiros na França, sendo que monges ali formados se dispersaram para fundar outros mosteiros na França e Suíça). Seu discípulo, São Gall, homem de grande cultura e humildade, assentou-se nas proximidades do Lago Constance [situado na atual fronteira entre Alemanha, Áustria e Suíça – N. do T.], tornando-se o Iluminador da Suíça e levando o Cristianismo, pela primeira vez, aos povos das montanhas e vales da região. Mais tarde, a famosa Abadia de São Gall foi construída na região por outro santo, Santo Otmar.

O compatriota de São Gall, São Fridolin, atuou de maneira semelhante na região do Alto Reno, convertendo os alemanos, no atual sudoeste da Alemanha. A fé, a sabedoria e as habilidades agrícolas e artísticas que levaram ao continente contrastavam fortemente com o nível de Cristianismo e cultura que lá permanecera, onde as escolas haviam desaparecido por completo e as cidades e estradas romanas estavam destruídas ou mal conservadas. E, obviamente, os vastos territórios que nunca estiveram sob domínio romano - assim como a maioria dos povos que recentemente se assentaram na Gália, Nórico e Récia – eram totalmente estranhos à vida cristã.

Por 500 anos, os irlandeses continuaram a migrar, freqüentemente formando a espinha dorsal da ortodoxia, da santidade e da renovação cristãs, além de preservarem os tesouros culturais com suas habilidades artísticas e literárias. Diversos santos famosos nas terras germânicas provavelmente eram irlandeses: São Virgílio e São Ruperto de Salzburgo; São Quiliano de Würzburg, o Apóstolo da Francônia; São Arbogasto de Estrasburgo; São Albuíno (Wittan), o Apóstolo da Turíngia; e São Aldo, fundador de Altomünster, na Bavária.

Mas seriam os anglo-saxões – retornando ao continente para converter seus próprios irmãos germânicos (os “velhos saxões”, como os chamavam), assim como os frísios e outros – que completariam a conversão da Alemanha.

X. Os missionários anglo-saxões e seus discípulos

Os anglos e os saxões germânicos conquistaram a Inglaterra e, por meio de esforços missionários de Roma e da Irlanda, foram convertidos ao Cristianismo no século VII. Inflamados de zelo cristão, alguns deles conceberam o desejo de ir ao continente e levar a palavra de Deus a seus irmãos pagãos. Na região onde hoje se situa a atual Alemanha, o mais importante desses missionários anglo-saxões foi São Bonifácio, conhecido como o Iluminador da Alemanha. Por onde andou, este homem poderoso e complexo entregou-se completamente à correção de erros, corrupções e heresias nos remanescentes da Igreja. Ele adentrava corajosamente nas regiões onde não havia igrejas, nas quais os germânicos ainda praticavam sacrifícios humanos, divinizações e adorações de demônios, e botava ordem na Igreja devastada pela guerra e apenas esporadicamente visitada por monges peregrinos. Ele possuía a rara habilidade de atrair grandes ajudantes: em suas viagens a Roma, ele persuadiu três santos compatriotas a se juntarem a ele na Alemanha (São Vilibaldo, São Vunibaldo e São Lull); por meio de cartas para abadessas inglesas, ele conseguiu inspirar muitas santas mulheres a fundarem conventos em terras germânicas e evangelizar mulheres (Santa Leoba e Santa Valburga são alguns exemplos). Ele sofria de solidão e de saudades de sua terra natal, mas nunca parou de servir àqueles a quem Cristo o havia chamado a ministrar.

No fim de sua vida, ele estabeleceu bispados em Mainz, Regensburgo, Eichstätt e Salzburgo, reformou o clérigo decadente, que era cristão apenas no nome, e batizou e educou uma quantidade enorme de pessoas. Após assinalar São Lull como seu sucessor, São Bonifácio deixou os principais centros de sua atividade (as terras germânicas da Turíngia, Hesse e Bavária), levando sua mortalha fúnebre consigo. Ele partiu para a Frísia, já idoso, onde ele e mais 42 pessoas foram martirizadas por pagãos, após trabalhos missionários bem-sucedidos. Ele está enterrado em seu mosteiro em Fulda, Alemanha.

XI. A conversão do norte da Alemanha

Os frísios e os saxões ocidentais eram as principais tribos do norte da atual Alemanha. Eles se apegaram a seus deuses pagãos, sobretudo porque identificavam o Cristianismo com a derrota para uma potência estrangeira. É verdade de Carlos Magno tinha fortes motivações políticas para converter os saxões pois, como se localizavam na costa do Mar do Norte, estavam perturbando seu reinado. Mas, diferentemente de seus famosos predecessores, o Imperador Constantino e o Rei Clóvis, Carlos Magno usou da força bruta para empreender tais conversões, o que somente resultou em rebeliões. Felizmente, verdadeiros santos também trabalharam na área para converter os corações e mentes dos povos a Cristo, por meio do amor e da mansidão.

Os mais antigos missionários foram São Suitberto e os dois Santo Evaldo. São Suitberto missionou os bructuares, uma tribo saxônia, embora tenham posteriormente se espalhada após invasões. Santo Evaldo, o Preto, e Santo Evaldo, o Branco, eram missionários anglo-saxões que tentaram converter os saxões. Enquanto esperavam encontrar o líder local, eles foram assassinados por seus homens, que não queriam abrir mão de seus deuses pagãos.

São Ludgero, pelas suas qualidades pessoais e pelo período tardio em que atuou, foi de longe o mais bem-sucedido missionário a converter os frísios e os saxões. Pela Providência de Deus, seu avô abandonara o reino dos frísios enquanto eles ainda eram bárbaros, pois seu caráter cordial e imparcial era incompatível com seus modos cruéis. Ele e sua família se tornaram cristãos na terra dos francos.

Quando a Frísia Ocidental (Holanda) foi conquistada pelos francos (cristãos), a família migrou de volta para a região próxima a Utrecht. Seu lar estava aberto aos grandes missionários cristãos e, quando menino, Ludgero conheceu São Bonifácio na região, logo antes de seu martírio. Inspirado pelo histórico de sua família e pelos encontros com esses missionários, ele levou o Cristianismo aos bárbaros. Sua fluência no idioma frísio e sua familiaridade com os usos e costumes frísios, bem como sua extraordinária educação monástica adquirida em Utrecht e York (Inglaterra), o qualificavam para a tarefa. Quando a Frísia Oriental (norte da Alemanha) também foi conquistada pelos francos, Ludgero recebeu, enquanto território missionário, cinco distritos frísios que se opunham virulentamente contra o Cristianismo. Eles concordaram em se tornar cristãos se lhes fossem enviados um mestre que falasse sua língua. Embora tenha deixado a região por duas vezes, em função de revoltas, Ludgero converteu a região com sucesso, viajando sem parar e construindo mosteiros e pequenas igrejas de madeira. Ele rejeitou o bispado da distinta cidade de Trier para melhor expandir as atividades missionárias entre os vizinhos saxões, que acabavam de ser conquistados pelos francos de Carlos Magno. Lá, então, finalmente aceitou o posto episcopal, tornando-se o primeiro Bispo de Münster. Por fim, ele construiu um grande mosteiro, nos moldes beneditinos, na cidade de Werden, no Ruhr (próxima da atual Essen), trazendo monges da Frísia, Saxônia e Francônia; foi aí que escolheu ser enterrado e onde suas relíquias repousam até hoje. Um pouco mais ao norte, outro missionário, o anglo-saxão São Vilehado, primeiro Bispo de Bremen, levou as Boas Novas de Cristo ao território que inclui Bremen e Oldenburgo.

XII. Prússia

A última parte da atual Alemanha a ser missionada foi a Prússia, no leste. Esta região, porém, nunca havia sido ortodoxa, pois seu povo permanecera pagão e se opunha violentamente ao Cristianismo, assassinando os dois primeiros missionários a chegarem ao território: Santo Adalberto de Praga (+997) e São Bruno de Querfort (+1009). Eles não se tornaram cristãos até serem convertidos à força pelos católicos romanos em 1249.

XIII. A Ortodoxia alemã pós-cisma

O Cristianismo Ortodoxo foi levado às atuais Alemanha, Áustria e Suíça por refugiados ou trabalhadores da Rússia, Sérvia, Bulgária, Grécia e demais países ortodoxos. Hoje, há diversas igrejas ortodoxas nos países de língua alemã, assim como um mosteiro sérvio que mantém a maior parte de seus ofícios na Alemanha (Mosteiro de Santo Espiridião, em Geilnau, Alemanha). Atualmente, os alemães estão descobrindo a Igreja Ortodoxa.

Há também alguns conhecidos alemães que deixaram seu país e se tornaram santos ortodoxos na Rússia. Os mais notáveis são os loucos-por-Cristo São Procópio de Ustiug, Santo Isidoro e São João, o Misericordioso, ambos de Rostov, a Mártir Czarina Alexandra e a Mártir Grã-Duquesa Elizabete. Eles, juntamente com o jovem mártir Alexander Schmorell, membro da resistência “Weisse Rose” durante o regime nazista, são muito reverenciados pelos cristãos ortodoxos alemães atuais.

19 de dezembro de 2007

São Nicolau, o Taumaturgo

Hoje comemora-se o dia de São Nicolau, o Taumaturgo, um dos mais famosos santos da Cristandade, e que é especialmente venerado na Igreja Ortodoxa Russa.

Vamos aproveitar este dia para lembrar que a figura deste venerável santo é exatamente o oposto do "Papai Noel", a quem supostamente São Niculau teria inspirado. Papai Noel não existe, é uma invenção humana feita para iludir crianças em favor de adultos mal-intencionados. São Nicolau existe, está vivo no Reino dos Céus, e intercede junto ao Cristo por todos aqueles que rezam com humildade e mansidão. Papai Noel é a esperança mórbida daqueles que só têm olhos para este mundo. São Nicolau é a esperança viva daqueles que sabem que Cristo salvou a humanidade e abriu Seu Reino para os dignos e justos. Papai Noel sufoca e mata o sentido do Natal. São Nicolau nos faz lembrar que este Natal é, afinal, o Natal de nosso Senhor, Deus e Salvador, Jesus Cristo.

Segue uma pequena biografia de São Nicolau, traduzida do site da Orthodox Church in America.

São Nicolau, interceda por nós junto a Cristo para que Ele tenha piedade de nós, perdoe nossos pecados e nos dê coragem, humildade e mansidão para levarmos uma vida digna e justa, a fim de sermos aceitos em Seu Reino eterno. Amém.

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São Nicolau, o Taumaturgo, Arcebispo de Mira, é famoso por ser um grande santo. Ele nasceu na cidade de Patara, na região da Lícia (litoral sul da península da Ásia Menor, atual Turquia), e era filho único de pais piedosos, chamados Teófanes e Nonna, que prometeram dedicá-lo a Deus.

Tendo sido fruto das orações de seus pais, que eram desprovidos de filhos, o jovem Nicolau, desde os primeiros dias de seu nascimento, revelara ao povo a luz de sua futura glória como taumaturgo [taumaturgo significa aquele que faz milagres]. Sua mãe, Nonna, após dar à luz, foi imediatamente curada de uma doença. O recém-nascido, quando estava na fonte batismal, ficou de pé por três horas, sem ajuda de ninguém, honrando assim a Santíssima Trindade. São Nicolau jejuava desde a infância, e as quartas e sextas-feiras ele não aceitava leite de sua mãe até que seus pais tivessem terminado as orações da noite.

Desde a tenra infância, Nicolau dedicou-se ao estudo das Sagradas Escrituras; de dia ele não deixava a igreja e, de noite, rezava e lia, fazendo de si próprio uma morada digna para o Espírito Santo. O Bispo Nicolau de Patara regozijava-se com o sucesso espiritual e com a profunda piedade de seu sobrinho. Ele o ordenou leitor e, mais tarde, elevou-o ao sacerdócio, tornando-o seu assistente e confiando-lhe o ensino do rebanho.

Servindo ao Senhor, o jovem era fervoroso de espírito; sua proficiência nas questões da fé o fazia parecer um ancião, despertando espanto e profundo respeito por parte dos fiéis.
Enérgico e laborioso, em oração incessante, o Padre Nicolau era sempre amável com seu rebanho e com aqueles que vinham em busca de ajuda, distribuindo sua herança aos pobres.

Certa vez, São Nicolau impediu que um habitante rico de Patara cometesse um grave pecado. O sujeito tinha três filhas e, em desespero, planejava vender seus corpos a fim de conseguir dinheiro para comprar comida. O santo ficou sabendo da pobreza desse homem e de suas vis intenções e à noite, em segredo, atirou um saco de ouro pela janela de sua casa. Com o dinheiro, o homem conseguiu arranjar um casamento honorável para sua filha. São Nicolau também deu ouro para as demais filhas, salvando a família de uma grande catástrofe espiritual. São Nicolau sempre fazia caridade em segredo, ocultando suas boas obras.

O Bispo de Patara resolveu peregrinar aos lugares santos de Jerusalém, e confiou o guiamento de seu rebanho a São Nicolau, que cumpriu a tarefa com esmero e amor. Quando o bispo retornou, Nicolau pediu sua bênção para uma peregrinação à Terra Santa. Ao longo do caminho, o santo previu que uma tempestade surgiria, ameaçando o navio em que estava. São Nicolau viu o diabo subindo no navio, afundando-o e matando todos os passageiros. Atendendo às súplicas dos peregrinos desesperados, ele acalmou as ondas do mar com suas orações. Pelas suas orações, certo marinheiro, que havia caído do mastro e encontrava-se gravemente ferido, foi curado.

Quando ele chegou à antiga cidade de Jerusalém, a caminho do Gólgota, São Nicolau deu graças ao Salvador. Ele visitou e adorou em todos os lugares santos. Certa noite, no Monte Sião, as portas da igreja se abriram sozinhas para o grande peregrino. Foi visitando os lugares santos ligados ao Filho de Deus que São Nicolau decidiu retirar-se para o deserto, mas foi barrado por uma voz divina que lhe encorajou a retornar a seu país de origem. Ele retornou à Lícia e, desejoso de uma vida em quietude, o santo entrou na irmandade de um mosteiro chamado Santo Sião, fundado por seu tio. Mas novamente o Senhor indicou outro caminho a ele: “Nicolau, este não é o vinhedo onde tu darás fruto para Mim. Retorne ao mundo, e, lá, glorifique Meu Nome”. Assim, ele deixou Patara e foi a Mira, na Lícia.

Com a morte do Arcebispo João, Nicolau foi escolhido Bispo de Mira da seguinte maneira. Um dos bispos do concílio afirmou que um novo arcebispo seria revelado por Deus, e não escolhido por homens. Um dos bispos, um ancião, teve uma visão na qual um Homem radiante lhe dissera que aquele que viesse à igreja de noite e fosse o primeiro a entrar seria feito arcebispo. Ele seria chamado Nicolau. O bispo entrou na igreja, aguardando Nicolau. O santo, que era sempre o primeiro a chegar à igreja, foi interrompido pelo bispo. “Qual seu nome, filho?”, perguntou. O escolhido de Deus respondeu: “Meu nome é Nicolau, Mestre, e sou teu servo”.

Após sua consagração como arcebispo, São Nicolau continuou sendo um grande asceta. Seu rebanho tinha dele uma imagem de cordialidade, bondade e amor pelo povo. Tais traços foram especialmente importantes para a Igreja de Lícia durante a perseguição aos cristãos no governo de Diocleciano (284-305). O Bispo Nicolau, preso junto com outros cristãos por se recusar a adorar ídolos, deu-lhes sustento, exortando-os a suportar as algumas, castigos e torturas. O Senhor o preservou intacto. Após a ascensão de São Constantino (21 de maio) como imperador, São Nicolau foi devolvido ao seu rebanho, que recebeu seu guia e intercessor com grande alegria.

Apesar de sua cordialidade de espírito e pureza de coração, São Nicolau era um zeloso e ardente combatente da Igreja de Cristo. Para combater os espíritos malignos, o santo destruiu os ídolos e templos pagãos da cidade de Mira.

Em 325, São Nicolau participou do Primeiro Concílio Ecumênico. Neste Concílio, foi proclamado o Símbolo de Fé de Nicéia, e nele São Nicolau levantou-se contra o herege Ário, ao lado de São Silvestre, Bispo de Roma (2 de janeiro), Santo Alexandre de Alexandria (29 de maio), São Spyridon de Trimitonto (12 de dezembro) entre outros Padres.

São Nicolau, cheio de zelo pelo Senhor, atacou o herege Ário com palavras, inclusive batendo-lhe no rosto. Por causa disso, foi desprovido das honras episcopais e colocado sob vigilância. Mas muitos Santos Padres tiveram a visão de que o próprio Senhor e a Mãe de Deus estavam lhe restaurando o Evangelho e o omofórion. Os Padres do Concílio entenderam, então, que a audácia do santo era agradável a Deus, e o reabilitaram ao seu ofício de bispo.

Retornando à sua diocese, o santo levou paz e bênçãos, semeando a palavra da Verdade, eliminando heresias, nutrindo seu rebanho com sãs doutrinas e fornecendo-lhes comida.

Mesmo em vida, o santo operava vários milagres. Um dos maiores foi quando libertou três homens de uma morte injusta, condenados pelo governador, que fora subornado. O santo agiu com coragem, levantando-se e tirando a espada do executor, que já estava suspensa sobre a cabeça dos condenados. O governador, denunciado por São Nicolau pelos seus atos, arrependeu-se e pediu perdão.

Neste evento estavam presentes três oficiais militares, enviados à Frígia pelo Imperador Constantino a fim de sufocarem uma rebelião. Eles não suspeitavam que, em breve, estariam pedindo a intercessão de São Nicolau. Homens malignos os caluniaram diante do imperador, tendo sido condenados à morte. Mas São Nicolau apareceu em sonho a São Constantino, pedindo-lhe para que revertesse a injusta sentença dos oficiais militares.

Ele operou diversos outros milagres, permanecendo em combate por muitos anos. Pelas orações do santo, a cidade de Mira foi poupada de uma fome terrível. Ele apareceu a certo mercador italiano, deixando com ele três moedas de ouro a título de promessa de pagamento. Ele pediu que velejasse até Mira e lá entregasse grãos. Mais de uma vez, o santo salvou náufragos, prisioneiros e escravos.

Em idade avançada, São Nicolau repousou em paz no Senhor. Suas relíquias incorruptas foram preservadas na catedral local, cujo bálsamo vertia com abundância e curava a muita gente. Em 1087, suas relíquias foram transferidas para a cidade italiana de Bari, onde permanecem até hoje.

O nome deste grande santo de Deus, o hierarca e taumaturgo Nicolau, tornou-se famoso nos quatro cantos da terra. Na Rússia, há uma multidão de catedrais, mosteiros e igrejas consagradas a seu nome. Não há, talvez, uma única cidade que não contenha uma igreja dedicada a ele.

O primeiro príncipe russo, Askold (+ 882), foi batizado em 866 pelo Patriarca Photius (6 de fevereiro) com o nome de Nicolau. No túmulo de Askold, Santa Olga (11 de julho) construiu o primeiro templo de São Nicolau na Igreja Russa de Kiev. As primeiras catedrais foram dedicadas a São Nicolau em Izborsk, Ostrov, Mozhaisk e Zaraisk. Em Novgorod, uma das principais igrejas da cidade, a igreja de Nikolo-Dvorischensk, tornou-se mais tarde uma catedral.

Igrejas e mosteiros famosos e venerados foram dedicados a São Nicolau em Kiev, Smolensk, Pskov, Toropetsa, Galich, Archangelsk, Ustiug, Tobolsk. Moscou possui dezenas de igrejas que levam o nome do santo, e lá há também três mosteiros com seu nome: o Nikolo-Grega (Staryi) no bairro chinês, o Nikolo-Perervinsk e o Nikolo-Ugreshsk. Uma das torres principais do Kremlin foi batizada de Nikolsk.

Muitas igrejas devotadas ao santo foram estabelecidas em bairros comerciais por navegantes, viajantes e comerciantes russos, venerando o taumaturgo Nicolau como protetor dos viajantes por mar e terra.

Muitas igrejas no interior da Rússia foram dedicadas ao taumaturgo Nicolau, veneradas por camponeses como um intercessor misericordioso diante do Senhor. E nas terras russas São Nicolau não cessou suas intercessões. A antiga Kiev preserva a memória do resgate miraculoso de um bebê pelo santo. O grande taumaturgo, ouvindo as preces de seus pais pela perda de seu único filho, tirou a criança das águas, ressuscitou-a e colocou-a no sótão de coral da igreja da Santa Sabedoria (Hagia Sophia) diante de seu ícone taumaturgo. De manhã, a criança foi encontrada sã e salva pelos seus pais, que então louvaram a São Nicolau, o Taumaturgo.

Diversos ícones milagrosos de São Nicolau surgiram na Rússia, inclusive vindos de outros países. Há uma antiga imagem bizantina do santo, trazida de Novgorod para Moscou, e uma grande imagem pintada no século XIII por um mestre de Novgorod.

Dois ícones do taumaturgo são especialmente conhecidos na Igreja Russa: São Nicolau de Zaraisk, retratado de corpo inteiro, com sua mão direita em posição de bênção e sua mão esquerda segurando o Evangelho (essa imagem foi trazida de Ryazan em 1225 pela Prinicesa Eupraxia, a futura esposa do Prícipe Teodoro. Ela faleceu em 1237, juntamente com seu marido e filho, durante a incursão de Batu); e São Nicolau de Mozhaisk, também de corpo inteiro, com uma espada em sua mão direita e uma cidade na esquerda, para lembrar o resgate miraculoso da cidade de Mozhaisk de invasões inimigas, por meio das orações do santo. É impossível listar todos os ícones de São Nicolau nem listar todos os seus milagres.

São Nicolau é patrono dos viajantes, e rezamos a ele pelo livramento de enchentes, pobrezas e quaisquer desgraças. Ele prometeu ajudar àqueles que se lembrarem de seus pais, Teófanes e Nonna.

São Nicolau também é lembrado no dia 9 de maio (translado de suas relíquias) e em 29 de julho (seu nascimento).

18 de dezembro de 2007

Como os cristãos devem se alimentar

Este é o capítulo 6 do livro How to Live a Holy Life ("Como viver uma vida santa"), do Metropolita Gregório de São Petersburgo (1784-1860). Fiz a tradução do inglês que, por sua vez, é uma tradução do russo. No entanto, como o conteúdo é relativamente simples, restringindo-se a orientações de ordem prática, creio que pode ser considerado como fiel ao original russo.

Jamais comece ou termine uma refeição sem uma fervorosa oração ao Senhor Deus. Hoje em dia, infelizmente, muitos cristãos não cumprem essa orientação. É espantoso como esses cristãos chegaram a um estado de alma na qual começam e terminam suas refeições sem uma fervorosa oração ao Senhor Deus. Ora, é exatamente o Senhor Deus que nos dá todo alimento. Sim, é verdade, nós também trabalhamos para obter nossos alimentos, mas de que adiantaria nosso trabalho sem a benção do Senhor Deus? De que adiantaria, por exemplo, se Ele não nos desse o clima apropriado, a umidade, os ventos e o sol para que pudéssemos cultivar e colher? Absolutamente para nada, como todos devem saber. Além disso, é exatamente o Senhor Deus quem confere aos alimentos propriedades nutritivas e aos nossos corpos a possibilidade de usar estas propriedades em benefício da nossa saúde. O que aconteceria se o Senhor Deus não tivesse dado qualidade nutricional aos alimentos? Ora, não importa o quanto consumíssemos esses alimentos, mesmo os mais nutritivos: não adquiriríamos força física e, portanto, não conseguiríamos desempenhar nossas tarefas diárias e nem mesmo continuar vivos. Desta forma, nenhum de nós permaneceria vivo. E mais: o que aconteceria se o Senhor Deus tirasse dos nossos estômagos sua função digestiva, nem que fosse por somente duas semanas? Ora, mesmo o alimento mais nutritivo não adiantaria de nada, mas, pelo contrário, nos deixaria exaustos, doenças acabariam surgindo ou até mesmo a vida nos seria tirada. Afinal, a experiência prova que mesmo os alimentos mais saudáveis podem ser danosos.

Nossas refeições devem sempre ser moderadas. Todos os santos tinham por hábito exercer uma intensa vigilância sobre si mesmos. Eles ensinavam, em uníssono, que (1) é necessário pouquíssimo alimento para satisfazer nossos corpos; (2) nossas barrigas, por si só, são incapazes de exercer a moderação; (3) às vezes, nossas barrigas exigem comida mesmo quando já têm o suficiente; e, portanto, (4) para exercer a moderação, é melhor parar de comer quando a vontade ainda não tiver cessado por completo. São João Crisóstomo deu uma excelente dica para que exercêssemos a moderação na alimentação: Coma apenas o suficiente para aliviar a fome. Outro santo ensinou: Você não deve comer tudo aquilo que deseja, mas sim comer o que você tem, de maneira que após comer ou beber, você ainda sinta vontade de comer.

Por falar em comida, os santos observavam, com muita propriedade, que os leigos deveriam comer pouquíssimos alimentos pesados, estimulantes, de difícil digestão, gostosos e doces, e que os monges, viúvos e viúvas deveriam se privar por completo desses alimentos. Os alimentos gostosos e doces devem ser evitados porque somos facilmente tentados a abusar deles, e os alimentos pesados, estimulantes e de difícil digestão devem ser evitados porque engendram na carne tendências malignas, e porque, quando fazemos uso deles, é quase impossível neutralizar tais tendências. Contudo, o alimento é necessário ao corpo. Não devemos negar ao corpo o alimento necessário. Por um lado, temos de satisfazer as necessidades naturais que dão sustento aos nossos corpos e almas. Por outro, se faltarem os alimentos necessários ao corpo, estaremos insurgindo contra nós mesmos um inimigo que, do contrário, não seria nosso inimigo.

Durante as refeições, especialmente no jantar, jamais consuma alimentos de maneira imoderada ou em excesso. Nossos alimentos são uma dádiva de Deus, e todas as dádivas de Deus, por serem divinas, devem ser recebidas com reverência, decoro, com temor a Deus, e consumidos apenas para o propósito a que nos foram concedidos. O alimento não é dado para a saciedade, mas para a satisfação.

A saciedade é extremamente prejudicial ao corpo, pois as desordens estomacais, a corrupção do sangue, as doenças e a morte prematura são, em grande parte, resultado de intemperança e de excessos. Tanto os médicos quanto a experiência e o Espírito de Deus atestam esse fato. Pois o excesso de alimento é a causa de doença...Muitos morreram por causa de sua intemperança (Eclesiástico 37,33-34).

A saciedade é extremamente prejudicial à alma. Quem quer que exagere na comida ou na bebida é incapaz de fazer exercícios espirituais e nem conseguirá rezar ou refletir sobre algo divino, pois o excesso de comida engendra preguiça, indolência, sonolência, conversas vãs, comportamentos ridículos e a uma multidão de pensamentos e desejos impuros. Além disso, inflama o ódio e o amor aos prazeres, como se fosse óleo atirado ao fogo. Via de regra, quem come em excesso não tem o verdadeiro Deus, mas sim sua própria carne e seus desejos. Portanto, quem exagera na comida é capaz de violar até mesmo as mais sagradas obrigações e está preparado para cometer os mais terríveis atos. Quem quer que observe a si próprio e as pessoas ao seu redor não precisa de evidências para provar esses fatos.

Durante as refeições, nunca diga nada pecaminoso. Ora, insultar Deus ao mesmo tempo em que você está comendo Suas dádivas é uma das piores ingratidões, pois este deveria ser exatamente o momento em que você precisaria estar sentindo e demonstrando gratidão. Mas, infelizmente, é durante as refeições que muitas pessoas travam as mais ímpias conversas: elas difamam, condenam, debocham umas das outras, especialmente de quem está ausente, contam piadas sugestivas, se entregam a comportamentos ridículos, zombam da fé e de vários assuntos relacionados à fé, e assim por diante. Tais condutas representam uma enorme ingratidão ao Senhor Deus. Guarde-se delas a todo custo.

Durante as refeições, deve-se dizer ou ouvir coisas edificantes: histórias santas, vida dos santos, histórias naturais que revelem a sabedoria e a bondade de Deus, ensinamentos espirituais etc. Os verdadeiros cristãos, durante as refeições, tentam se lembrar vividamente da morte e do temeroso julgamento, a fim de que se mantenham em um estado de espírito agradável a Deus e inacessíveis a qualquer tipo de depravação. Isso se faz necessário porque, à mesa, as pessoas tendem a se tornar indolentes e sonolentas por causa da comida.

Às vezes, acontece de um alimento malcozido ser servido; nesses casos, os santos imaginavam que todos nós, por causa de nossos pecados e nossos constantes insultos a Deus, somos indignos não só desse alimento malcozido, mas até mesmo da lavagem dos porcos. E então, eles o consumiam como se tivesse sido bem cozido. Quem quer que consuma sua refeição desta maneira, isto é, com moderação e gratidão ao Senhor Deus, está agindo como deveria, ou seja, de maneira reta e agradável a Deus. Talvez não venha a ter abundância em sua casa, mas certamente não passará por total pobreza. O Santo Profeta Davi disse: Fui moço, e agora sou velho; mas nunca vi desamparado o justo, nem a sua semente a mendigar o pão. Compadece-se sempre, e empresta, e a sua semente é abençoada (Salmo 37:25-26), ou seja, todo dia ele dava algum sustento aos pobres e os ajudava com alguma coisa. Então, quem não tem seu pão de cada dia deve examinar a si mesmo de maneira atenta e imparcial, a fim de determinar se está rezando ao Senhor Deus antes das refeições, e se está trabalhando por esse pão. Aquele que não reza ao Senhor Deus ou não trabalha pelo pão não deveria ficar surpreso por não ter seu pão de cada dia. Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também, conforme disse o Apóstolo Paulo (II Tessalonicenses 3:10).

17 de dezembro de 2007

Fé e ciência II: A evolução é um fato?

Esta é a segunda parte da série Fé e Ciência, do podcast de Clark Carlton. A primeira parte está aqui.

Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, tornar-se-ão como a lã. Se quiserdes, e obedecerdes, comereis o bem desta terra (Isaías 1:18-19).

Olá. E bem-vindos de volta ao programa Faith and Philosophy (Fé e Filosofia). O tema de hoje é Deus e Ciência, parte 2: “A evolução é um fato?”

O tema de hoje é uma continuação da semana passada, e admito, de saída, que é um tema polêmico. Eu não vou aqui examinar as evidências pró e contra a evolução. Ou seja, eu não estarei preocupado com a questão “A seleção natural explica de maneira satisfatória o surgimento da vida humana na terra?” A propósito, eu duvido que ela explique, mas não é disso que me ocuparei aqui.

A pergunta que quero responder é “A evolução é um fato?” A palavra-chave é fato. Acho essa questão importante porque é algo que a gente sempre ouve por aí. Nos debates públicos sobre Design Inteligente ou “ciência” criacionista – e eu já mostrei, na semana passada, que ciência criacionista não é ciência – ouvimos professores afirmando que “A evolução é um fato”. Quem quer que se atreva a negar isso será tachado de ignorante, de bronco anticientífico.

Às vezes, quando alguém sugere que há alguma coisa mal explicada na seleção natural, ouve-se a seguinte resposta: “Mesmo que não conheçamos o mecanismo por completo, mesmo assim, a evolução é um fato”.

Será? A resposta curta para essa pergunta é “não”. Na verdade, a afirmação de que a evolução é um fato oculta um desprezo gigantesco pela maneira correta de usar a palavra. E mais, o abuso de linguagem denuncia um comprometimento fundamental com o que chamamos, semana passada, de materialismo enquanto pressuposição metafísica.

Vocês se lembram que fiz uma distinção entre materialismo enquanto suposição metodológica e materialismo enquanto suposição metafísica. A ciência é materialista; ela estuda o mundo material à sua maneira e tenta, sempre que possível, fornecer explicações de âmbito material. Por outro lado, o materialismo metafísico é uma suposição a priori de que a matéria é tudo o que existe no mundo.

Também disse, semana passada, que a ciência, estando confinada ao mundo material, pode responder a pergunta “como?” mas não a pergunta “por que?”, em última instância. A pergunta “Por que estamos aqui?” situa-se fora do escopo da investigação científica. É uma pergunta que a ciência não deveria nem mesmo formular, muito menos responder.

No entanto, a questão se a vida na terra evoluiu de uma sopa primordial de elementos situa-se, sim, no escopo da ciência. É uma questão legítima. Mas o fato de ser legítima não significa que ela possa ser respondida definitivamente.

Vamos começar do começo. O elemento central de quase todas as definições da palavra “fato” é a inegabilidade. Um fato é algo que nenhuma pessoa sã pode negar.

Ora, imaginem que estejamos trabalhando numa escavação arqueológica e que descubramos alguns fósseis – vamos chamá-los de grupo fóssil A – numa determinada profundidade que chamaremos de camada 4. A descoberta do grupo A na camada 4 é um fato. É claro que alguém do outro lado do mundo poderia negar tal descoberta, mas, pelo menos para as pessoas que descobriram os fósseis, trata-se de um fato, não importa o que os outros pensem.

Imagine agora que encontramos outra série de fósseis – o grupo B – numa camada mais profunda, que chamaremos de camada 9. Isso também é um fato. Porém, nenhum desses fatos, em si e por si, são interessantes.

Todavia, com base no que sabemos sobre o solo e as camadas rochosas, concluímos que o grupo B é mais antigo que o grupo A, porque foi encontrado num nível mais profundo. Isto é um fato? Propriamente falando, não; é uma inferência. Mas poderia ser uma inferência tão bem embasada que nenhuma pessoa séria se atreveria a negá-la. Nesse caso, muitas pessoas concordariam em chamar tal inferência de “fato”.

Mas note que, nesse caso, estamos usando a palavra “fato” de maneira coloquial. Há uma grande diferença entre dizer “encontramos o grupo B na camada 9” e “o grupo B é mais antigo que o grupo A”. A primeira afirmação é confirmada pela observação direta; a segunda é produto de inferência, mesmo que seja bem embasada.

Sigamos em frente. Com base em evidências, podemos inferir uma relação entre o grupo B e o grupo A. Realmente, podemos concluir que o grupo A é resultado de um desenvolvimento evolucionário do animal cujos fósseis estão no grupo B. Além disso, posso imaginar uma situação na qual as evidências disso são tão abundantes que, novamente, nenhuma pessoa em sã consciência a negaria. Isso também seria chamado de “fato”, embora em sentido coloquial.

Mas a gente sabe que quando os cientistas aparecem na TV e proclamam que “a evolução é um fato”, eles não querem dizer que uma determinada espécie evoluiu uma determinada característica com o passar do tempo. Se fosse assim, até eu concordaria com o uso da palavra “fato”.

Mas não é isso que eles querem dizer. Eles querem dizer que toda vida na terra evoluiu até o presente estado a partir de formas simples de vida, e que tudo isso aconteceu por processos puramente naturalistas. Ora, isto pode ou não ser verdade, mas dificilmente poderíamos dizer que se trata de um fato inquestionável. Pelo contrário: trata-se de uma generalização indutiva que, em si, se baseia numa série de inferências que, em si, são derivadas de “fatos”. Em outras palavras, os cientistas concluíram que, para além da dúvida razoável, as espécies mudam com o passar do tempo e se adaptam a seus ambientes – seria absurdo negar isto – e, a partir daí, generalizaram, afirmando que o mesmo mecanismo se aplica a todas as vidas do planeta.

Ora, até mesmo quem acredita nisso deveria admitir que se trata de uma generalização bastante ambiciosa. Além do mais, pessoas razoáveis podem e, na verdade, discordam se tal generalização é um “fato”. A evolução, nesse sentido, simplesmente não pode ser chamada de fato por quem quer que entenda o que essa palavra realmente signifique.

Agora, preciso dizer algumas coisas sobre a “seleção natural”. Ela também não é um “fato”; é uma hipótese. A seleção natural seria o mecanismo pelo qual a evolução ocorreria. E, que fique claro, trata-se de uma hipótese bastante útil, que explica um grande número de “fatos” observados. Por outro lado, há outros fatos que não são facilmente explicados pela seleção natural.

Isto é importante porque para inferir que há uma relação evolucionária entre dois grupos fósseis, é necessário fornecer uma explicação plausível para que tal desenvolvimento tenha ocorrido. Ausente tal mecanismo, há pouca razão para inferirmos uma relação evolucionária.

É por isso que eu fico irritado quando ouço alguém dizendo: “Podemos não saber exatamente como a evolução ocorre, mas que ela ocorre é um fato”. Ora, isso é um absurdo. Explicar como as coisas acontecem é o papel da ciência. Insistir numa relação entre dois fatos, mesmo que não haja uma explicação materialista para como eles se relacionam, não é nada melhor do que invocar fadas e duendes para explicá-los. E nós é que somos acusados de usar “Deus” para preencher as falhas de nosso conhecimento.

Tudo isso nos leva de volta aonde começamos. Por que os cientistas que, afinal, são pessoas racionais, insistem em fazer afirmações absurdas? A resposta é que muitos deles estão comprometidos com o materialismo, não enquanto pressuposição metodológica, mas enquanto artigo de fé metafísico. Para muitos deles, o cientificismo, e seu dogma principal, o evolucionismo, é um culto religioso.

No final das contas, não faço a menor idéia se os humanos foram criados como são ou se são produto de desenvolvimento de formas pré-humanas. Mas o que eu sei é que as evidências para tal desenvolvimento estão muito longe de serem conclusivas. E sei também que aqueles que insistem nessa idéia estão partindo de pressuposições metafísicas que são totalmente diferentes das nossas, e que freqüentemente promovem visões políticas e sociais que também são totalmente diferentes da nossa visão ortodoxa.

A ciência não está em conflito com nossa fé ortodoxa. Não temos nada a temer da investigação científica honesta. O cientificismo, por outro lado, é uma religião competidora. E temos de estar alertas para isso.

E que nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, que criou o universo sem os palpites de Carl Sagan ou Stephen J. Gould, pelas intercessões de Santo Inocêncio do Alaska e do abençoado Ancião Sofrônio Sakharov, tenha piedade de nós e conceda-nos uma entrada rica em Seu reino eterno.

Meu nome é Clark Carlton, falando para a Ancient Faith Radio.

13 de dezembro de 2007

Arcebispo Leôncio do Chile

Poucos conhecem a vida do Arcebispo Leôncio do Chile (1904-1971) e do papel que desempenhou no crescimento do Cristianismo Ortodoxo na América do Sul. Embora o continente sul-americano seja tão carente de figuras místicas e religiosas de valor, quando elas surgem, ao invés de serem propriamente louvadas e popularizadas, são olimpicamente ignoradas. Parte disso se explica pelo tamanho diminuto da comunidade cristã ortodoxa sul-americana, mas creio que parte se explica também pela consciência geral da elevada improbabilidade de tais figuras florescerem em um território tão hostil à prática religiosa tradicional.

O fato é que o Arcebispo Leôncio é considerado um homem santo pelo seu rebanho e por aqueles que o conheceram pessoalmente, embora ainda não tenha sido glorificado pela Igreja. Sua vida ascética, a influência espiritual de São João (Maximovitch) de Shanghai e San Francisco, os milagres, seu zelo martirizante: tudo isso faz deste santo homem um verdadeiro confessor da Ortodoxia do coração.

Para sorte dos sul-americanos, o Arcebispo Leôncio está enterrado em Santiago do Chile. Portanto, quem visita a capital chilena não deve perder a oportunidade de rezar no túmulo do Arcebispo Leôncio e pedir suas orações intercessoras. Para encontrar seu túmulo, contei com a inestimável ajuda do Padre Alex Vilugrón, da Paróquia de São Nectário de Pentápolis e da Missão de São Siluan do Monte Athos (Igreja Ortodoxa Russa no Exterior), bem como da secretária das paróquias, a Sra. Elizabeth Jurlow.

Para chegar lá, tome a linha 4 do Metrô até seu extremo sul, isto é, até a estação Plaza de Puente Alto. Lá, tome um táxi ou ônibus até a Avenida Eyzeguirre, 2.395, na própria comuna (bairro) de Puente Alto, onde está localizado o Cemitério Ortodoxo Russo. O táxi lhe custará 2.000 pesos chilenos (aproximadamente US$ 4,00) enquanto a tarifa do ônibus é de apenas 380 pesos por pessoa. Várias linhas passam pela Avenida Eyzeguirre, bastando perguntar a alguém que esteja no ponto de ônibus em frente à estação de metrô qual delas poderá ser tomada. Caso se decida pelo ônibus, não se esqueça de levar dinheiro contado, pois em Santiago não há cobradores e, portanto, não haverá troco.

Uma vez no cemitério, informe-se pelo túmulo do Arcebispo Leôncio. Quando estive lá, o funcionário local – na verdade uma família que mora numa casa anexa ao cemitério – não soube informar exatamente onde estava o túmulo, então tive de procurá-lo um por um. Por fim, não foi difícil encontrá-lo, pois o túmulo do Arcebispo é o maior e mais imponente, ao final do corredor central.

Aproveito este post para publicar minha tradução da biografia do Arcebispo Leôncio, publicada na revista The Orthodox Word em 1981.

Pelas orações do Arcebispo Leôncio do Chile, que nosso Senhor e Deus e Salvador Jesus Cristo tenha piedade e dê a vitória ao todos nós, cristãos ortodoxos da América do Sul. Amém.

* * *

ARCEBISPO LEÔNCIO DO CHILE:
CONFESSOR DA ORTODOXIA DO CORAÇÃO

Apesar do evidente desvanecimento da influência do Cristianismo em nossa civilização e da notória ausência de heróis cristãos em nosso meio, Deus não abandonou Sua Igreja perseguida. Ele fez surgir extraordinários hierarcas ortodoxos cujo heroísmo, de proporções históricas, apenas aumenta com o passar do tempo. Infelizmente, tais heróis não chegam ao conhecimento da maioria na Igreja.

Um desses hierarcas, morto há dez anos sem que praticamente ninguém soubesse, foi o Arcebispo Leôncio do Chile, um destemido pregador do Cristianismo Ortodoxo, primeiramente na Rússia e, depois, no exterior. Seu papel histórico é de um confessor do verdadeiro Cristianismo do coração.

Quando ele morreu, em 19 de junho/2 de julho de 1971 – precisamente no quinto aniversário do repouso de seu querido Arcebispo João Maximovitch, outro extraordinário hierarca do século XX – o Arquimandrita Constantino de Jordanville afirmou: “Há pessoas cuja morte preenche com luz o coração das pessoas. Em todos os contatos que tiveram, essas pessoas viveram pelo seu grande coração. O que significa isso? Significa que, para elas, cada pessoa com quem mantiveram contato, mesmo que por breves instantes, era uma personalidade de natureza espiritual... Pode-se dizer que, apesar de nos ter deixado, ele está mais próximo de nós, mas não de maneira mundana”.

O Arcebispo Leôncio nasceu em 6 de agosto de 1904, numa piedosa família russa (Filipovich). Um de seus parentes distantes foi Santo Atanásio de Brest, que morreu martirizado por católicos romanos, no século XVII.

Desde a tenra infância, o Arcebispo Leôncio demonstrou forte inclinação para a Igreja, desejando dedicar sua vida a ela. Sua educação primária deu-se numa escola privada, onde seu imenso talento musical permitiu-lhe assumir no coral a posição de solista. Ele se lembrava, com grande emoção, quando o Imperador Nicolau II visitou sua cidade e que ali vira, num relance celestial, o futuro Tsar-mártir. Quando a revolução chegou a Kiev, ele já se encontrava espiritualmente próximo do Mosteiro das Cavernas de Kiev, mas foi preso assim mesmo. No entanto, quando descobriram que ele era de família “proletária”, foi libertado. Além disso, como o governo soviético precisava de um grande tenor, foi-lhe oferecida uma bolsa de estudos e um treinamento para óperas. Embora essa grande carreira musical estivesse à sua disposição, ele a declinou, decidindo servir à Santa Igreja Ortodoxa.

E que caminho pesaroso ele escolheu para si! Um caminho de perpétuas privações, sofrimentos, e de testemunha de intermináveis tragédias pessoais durante os anos soviéticos, até a chegada dos alemães em 1941. Ele tornou-se noviço do Mosteiro exatamente no período em que foi brutalmente liquidado. Seus monges foram torturados e entregues às mais variadas privações, e muitos foram mortos. É a partir destes sofrimentos que ele se tornou um confortador dos clérigos expulsos, lavando as feridas dos hierarcas que foram soltos e buscaram refúgio no Mosteiro. Ele salvou a vida do Bispo Partênio ao puxá-lo de uma sarjeta, afastando-o de uma matilha de cães raivosos e entregando-o a uma velha senhora, que então o tratou e recuperou.

Após a liquidação final do Mosteiro das Cavernas de Kiev, ele foi a Moscou, onde, sob terríveis condições, conseguiu completar o curso de teologia na Academia; as aulas na época tinham de ser conduzidas nos apartamentos particulares dos professores. Lá, ele novamente conheceu vários bispos e serviu de ponto de contato entre eles e os demais clérigos.

Como ele possuía um documento que o declarava membro do “proletariado”, ele se aproveitou dessa situação para viajar e visitar diversos locais santos e mosteiros na Rússia, logo antes ou mesmo logo depois de serem liquidados. Assim, ele visitou Sarov, Diveyevo, vários mosteiros da região de Novgorod e outras mais. Ele viu o grande mosteiro de Rostov vandalizado, suas relíquias profanadas e seus clérigos humilhados. Tudo o que viu registrou em seus diários, trechos dos quais foram preservados em forma de manuscritos.

Ele testemunhou os mortais sofrimentos da Santa Rússia. Ele ouviu as vozes dos santos hierarcas se lamentando, dos santos loucos profetizando e das mães chorando; mas tudo isso não foi capaz de lançá-lo ao desespero mas, pelo contrário, encheu seu coração com o santo zelo, pois compreendeu que estava vivendo numa nova era de mártires.

Como era muito próximo de diversas figures importantes da Igreja, ele conseguiu se tornar uma testemunha viva dos confessores de Cristo, o que mais tarde acabou lhe permitindo testemunhar, no mundo livre, seus sofrimentos inocentes, infligidos pela atrocidade bestial do governo soviético. Boa parte dos três volumes da obra do Padre Miguel Polsky sobre os Novos Mártires da Rússia foi baseada em materiais enviados pelo Arcebispo Leôncio.

Mas o próprio Arcebispo Leôncio não foi poupado de severas perseguições, nos anos anteriores ao advento da Segunda Guerra Mundial. Ele foi preso três vezes e, mais tarde, se lembrava de como, na prisão, os bispos e padres celebravam a Divina Liturgia enquanto fingiam jogar cartas numa mesa.

As condições prisionais, nos anos 1930, eram tão ruins que a maioria dos presidiários estava preparada para morrer nas mais desumanas condições. Alguns ministravam a Eucaristia no corpo de um sofredor moribundo, reconhecido como mártir, já que a Divina Liturgia é sempre celebrada sobre as relíquias de mártires.

O Arcebispo Leôncio conseguiu escapar da prisão, ficando por algum tempo escondido num sótão, suspenso num saco em forma de rede para que suas pegadas não fossem reveladas; o único período em que conseguia se exercitar era na calada da noite, enquanto os guardas dormiam no andar de baixo. Essas condições persecutórias dos cristãos soviéticos parecem inacreditáveis para nós, do mundo livre, porque vivemos nossa fé ortodoxa com indiferença. Mas se vivêssemos pelo calendário ortodoxo, onde a cada dia há leituras das Escrituras e comemorações de santos e mártires, entenderíamos melhor.

Quando os alemães chegaram ao oeste russo em 1941, a liberdade religiosa foi restaurada e um grande campo de atuação se abriu aos clérigos sobreviventes. Nessa época, o então Arquimandrita Leôncio se encontrava na Bielo-Rússia, onde logo teria sido consagrado bispo no renomado Mosteiro de Pochaev, que até então estava em território polonês e, portanto, escapara da destruição soviética. Entre 1941, quando foi ordenado, e novembro de 1943, quando partiu para o Ocidente, ele foi bispo de Zhitomir, ordenando 300 padres e diversos bispos, além de ter aberto centenas de igrejas. Seu entusiasmo e profundo carinho pelo povo fez dele um extraordinário pastor que, quando celebrava as Liturgias, era transportado para outro mundo. Sua voz de tenor parecia sobrepujar todo tumulto mundano, mas sua mente afiada nunca se ausentava da realidade humana. Ele prosseguiu sua atuação eclesiástica no mesmo espírito, tanto na Áustria e na Alemanha Ocidental quanto no Paraguai e no Chile, onde foi apontado bispo (a Argentina tornou-se parte de sua diocese longe antes de sua morte).

No Chile, ele fundou uma comunidade monástica, sendo que um de seus membros foi o Bispo Savva de Edmonton, Canadá. O Arcebispo Leôncio o trouxe para sua comunidade monástica, inspirando-o a seu ideal monástico, tonsurando-o e apontando-o como pastor independente que, mais tarde, mostrou-se ser um zeloso bispo, iniciando uma renovação espiritual na Igreja Russa; hoje, ele é conhecido como o cronista da miraculosa vida do Abençoado Arcebispo João Maximovitch.

Durante suas viagens pelo mundo livre, o Arcebispo Leôncio fez um estudo da situação lamentável de seus irmãos ortodoxos na Grécia, enfraquecidos pelas influências modernistas na vida ortodoxa, simbolizada pelo novo calendário papal forçado sobre eles nos anos 1920. Em seu zelo martirizante, ele foi à Grécia e ordenou bispos aos fiéis que seguiam o Antigo Calendário, estabelecendo assim um contato entre eles e a Igreja Ortodoxa Russa no Exterior.

Logo depois, ele foi elevado a Arcebispo, fundando o Convento da Dormição, cujas monjas foram trazidas da Terra Santa; hoje, nesse convento, funciona um orfanato e uma escola paroquial, de nome São João de Kronstadt. Essas monjas, lideradas pela Abadessa Alexia, foram originalmente abençoadas pelo Ancião Nectário de Optina, hoje um santo glorificado, cujas tradições eles aderiram com firmeza nos seus treinamentos monásticos de noviças.

O Arcebispo Leôncio foi um defensor da verdade, levantando-se sem medo, em todos os seus desafios espirituais, contra qualquer manifestação de injustiça. No seu primeiro encontro com o Arcebispo João Maximovitch, em Paris, ele imediatamente o reconheceu como um santo vivo, exatamente como aqueles que haviam visto e com quem havia vivido na sofrida Rússia. Com coração amoroso, ele se curvou perante a autoridade espiritual do Abençoado João, auxiliando-o sempre que era difamado por aqueles a quem faltava a experiência do contato vivo com os genuínos santos de Deus. Quando esses difamadores se levantaram contra o Arcebispo João, processando-o em San Francisco nos anos 1960 por corrupção nas finanças da igreja, o Arcebispo Leôncio imediatamente foi até lá para defendê-lo, sentando-se a seu lado, juntamente com os Bispos Savva e Nectário, no banco dos acusados. Obviamente, o Arcebispo João foi declarado inocente, e o monumento de sua vitória está hoje simbolizado na magnífica catedral ortodoxa de San Francisco, sob a qual repousam as relíquias de São João.

Quando o Arcebispo Leôncio foi informado da súbita morte do Arcebispo João, ele, juntamente com outro justo e perseguido hierarca, Arcebispo Averky de Jordanville, dirigiram por todo os Estados Unidos para estarem presentes em seu funeral. Lá, ele derramou lágrimas amargas sobre o corpo do Arcebispo João, a quem ele tanto amava que seu desejo era estar próximo de seu túmulo, talvez como Arcebispo de San Francisco. Deus, porém, não lhe concedeu tal dádiva e, exatamente no quinto ano da morte do Arcebispo João, após ter rezado pelo repouso de sua alma na catedral de Buenos Aires, ele entregou sua alma a Deus, juntando-se a seu amado Abba.

A súbita morte do Arcebispo Leôncio, que estava se recuperando de uma doença cardíaca, provocou grande pesar em seu rebanho. Eles o enterraram no cemitério que ele mesmo fundou. A criança doente de uma mulher chilena foi colocada sobre seu túmulo, tendo sido miraculosamente curada. Houve outros casos de intervenções celestiais por meio das orações do Arcebispo Leôncio. Mas o relato mais tocante vem de um venerador de sua memória, a quem foi concedida uma série de visões, um trecho das quais apresentamos aqui:

"A visão se deu exatamente no dia de 1971 em que o Concílio de Bispos decidiu iniciar as preparações para a canonização dos Novos Mártires da Rússia. Era um domingo. Num sono rápido, meu pai espiritual (que ainda está vivo em Buenos Aires) apareceu a mim em espírito, me confessou e perdoou meus pecados.

“No começo deste sonho, vi a mim mesmo num gigantesco templo, que não era feito por mãos humanas. No kliros da direita, havia uma enorme multidão vestida de branco: não pude reconhecer seus rostos. Ao meu redor havia uma cantoria calma, tocante, embora eu não pudesse ver ninguém. Então, as duas portas laterais do altas se abriram e delas saíam santos hierarcas e monges, completamente vestidos de azul; entre eles, só pude reconhecer São Nicolau, o Taumaturgo, de Myra em Lycia. Da porta próxima a mim, entre os bispos que passavam, o Arcebispo Leôncio parou ao meu lado, e disse: ‘Você, irmão Basílio, foi chamado e veio. Você sabia que temos uma grande celebração hoje!’ ‘Que tipo de celebração, Vladika?’, perguntei. E ele disse: ‘A glorificação celestial do Tsar-mártir!’ E tendo feito uma leve reverência a mim, continuou no seu caminho à kathedra (no centro da igreja).

“Por fim, as portas reais se abriram, e delas saiu o Tsar-mártir, parecendo-se exatamente como era nos retratos oficiais, durante seus primeiros anos de reinado, ou seja, muito jovem. Ele estava vestido com o manto real do Tsar, como na sua coroação, e levava a coroa do imperador em sua cabeça. Em suas mãos, uma grande cruz, e em sua pálida face notei uma pequena ferida, seja de bala ou golpe. Ele passou por mim em passos uniformes, e quando seu pé tocou a kathedra, o volume ficou tão alto que parecia que o mundo inteiro estava cantando a uma só voz.

“Então eu acordei, estremecido, com uma pequena ferida no meu olho direito. Era aproximadamente quatro horas da madrugada. Por muito tempo, ficou em mim a impressão do que eu acabara de experimentar”.

O mesmo homem viu o Arcebispo Leôncio em sonho, logo antes do quadragésimo dia após seu repouso: “No 37º dia após o repouso do Arcebispo Çeôncio, tive uma visão em sonho. Vi-o em paramentos eclesiásticos e um indivíduo mitrado liderando o ritual solene na igreja. Quando me viu, imediatamente se levantou para me cumprimentar. Ele me abraçou e me beijou, dizendo: ‘Como estou feliz em te ver, irmão Basílio. Estou muito bem agora. Não sinto dor, e aqui sou muito feliz. Em poucos dias, receberei novos aposentos com todos os confortos, como dizem na terra; isso já me foi prometido’.

“Um mês depois, vi outro sonho, indicando-me que a ele foi concedido uma morada celestial. Ouvi belas canções e vi milhões de estrelas cintilantes, e eu já estava num barco que me levava à margem onde ele estava. Isto é o que Deus preparou para seus fiéis servos das catacumbas, e mais tarde à nossa Igreja no Exterior”. (Orthodox Life, 1971, Dezembro, pág 18-20).

Pelas orações do justo Arcebispo Leôncio, confessor da Ortodoxia do coração, que nosso Senhor tenha piedade de todos nós. Amém.

4 de dezembro de 2007

Fé e ciência I: A ciência tem de ser materialista?

Creio que as grandes questões culturais e filosóficas de nosso tempo devam ser analisadas e entendidas a partir de uma mentalidade devidamente fundada na Tradição e na autoridade mística e dogmática dos Santos Padres. O podcast de Clark Carlton procura fazer exatamente isso, especialmente na série Faith and Science, já citada anteriormente, e cujas transcrições o autor gentilmente me encaminhou e que passo a publicá-las aqui.

Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, tornar-se-ão como a lã. Se quiserdes, e obedecerdes, comereis o bem desta terra (Isaías 1:18-19).

Olá. Bem-vindos de volta ao programa Faith and Philosophy [Fé e Filosofia]. O assunto de hoje é Fé e Ciência.

Gostaria de novamente tocar num assunto do qual falei no começo deste ano, numa série sobre Ortodoxia e a cultura moderna. Já que a relação entre fé e ciência é um assunto sempre conflituoso neste país, achei que fosse uma boa idéia tentar dar meus pitacos a respeito.

Hoje, pretendo me focar especificamente na definição e no escopo da ciência, e, em particular, na sua relação com a doutrina filosófica do materialismo, que afirma que a matéria (acho que tenho que emendar essa fórmula um pouquinho, dizendo: matéria mais energia) é a única realidade.

Estou levantando essa questão porque uma das críticas mais comuns que os evangélicos fazem contra a ciência moderna é que ela é materialista. Isso parece ser algo ruim. Seria preciso uma abordagem científica que não estivesse comprometida com o materialismo. Uma que estivesse aberta a coisas como design e criação inteligentes.

Todavia, tais críticas, que encontramos nas obras de Philip Johnson, entre outros, tendem a fazer vista grossa a uma distinção crucial. Há uma diferença enorme entre materialismo enquanto pressuposição metodológica e materialismo enquanto pressuposição metafísica.

O que quero dizer é o seguinte: A ciência estuda o mundo material. Seu método básico é o da observação empírica. A razão e a matemática são invocadas para que tais observações façam sentido, mas isso não muda o fato de que a fundação de toda a ciência moderna é a observação. A ciência lida exclusivamente com o que pode ser experimentado e/ou medido.

Portanto, a ciência é metodologicamente materialista, pois lida exclusivamente com o mundo material. Quando um fato ou evento material é observado, os cientistas tentam encontrar uma causa para ele. É isso o que os cientistas fazem. Por isso, “ciência criacionista” é algo que não faz sentido. A ciência não tem como avaliar a afirmação de que algo na natureza (ou a natureza em si) foi causado por algo fora da natureza.

Nem mesmo a ciência do “design inteligente” faz sentido. Tudo bem, admito que certos aspectos do design inteligente tenham implicações filosóficas: por exemplo, o conceito de Michael Behe da complexidade irredutível. Contudo, mesmo isso não é ciência, pois se trata de uma crítica filosófica ao método científico em si. Ele diz que há certas coisas em nosso mundo que a seleção natural não é capaz de explicar. A propósito, eu concordo com essa idéia. Mas ela não fornece um modelo alternativo porque um Designer inteligente não é algo testável.

Mas e se não houver nenhuma resposta materialista a determinado problema? E daí? Bem, é neste ponto que a ciência pára de atuar. Pois a ciência é metodologicamente materialista e, portanto, por definição, limitada ao universo material. A ciência pode perguntar “Como?” no sentido de quais circunstância e ações materiais provocaram este evento em particular, mas ela não consegue perguntar “Por quê?”, filosoficamente falando.

Mas nós sabemos muito bem que os cientistas raramente se contentam com esse horizonte limitado. Para muitos, a ciência deve perguntar “Por quê?”. Porém, é neste ponto que cruzamos a fronteira da ciência genuína e entramos no cientificismo, e a demarcação entre uma coisa e outra é exatamente a adoção, por parte do cientificismo, do materialismo enquanto pressuposição metafísica.

Gente como Carl Sagan e Richard Dawkins podem ser considerados como expoentes desse tipo de raciocínio. Toda sua abordagem científica é marcada pela suposição metafísica de que o mundo material é tudo o que existe ou pode existir. Assim, a teoria da seleção natural, por exemplo, não apenas descreveria o processo mecânico pelo qual os organismos mudam e evoluem, mas é também a chave para entender o sentido de toda a existência biológica.

Ora, não há absolutamente nada científico nesse tipo de suposição. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein ensinava que se você desenhasse uma linha e dissesse “A realidade termina aqui”, você estaria fazendo uma afirmação metafísica, mesmo que dissesse que do outro lado dela não houvesse nada.

A ciência, enquanto ciência, deve ser agnóstica nessas questões porque estão além do seu escopo.

Deixe-me ilustrar isso melhor, citando Tomás de Aquino. Muitos aprenderam na faculdade as “Cinco Provas” de Tomás de Aquino para a existência de Deus. A essência de seu argumento é algo que mais tarde foi chamado de argumento cosmológico para a existência de Deus. Embora associemos este argumento com Tomás de Aquino, o grosso veio integralmente de Aristóteles.

Vou dar aqui uma versão “Reader´s Digest” da coisa. Sabemos que um corpo em repouso permanecerá em repouso até que uma força externa atue sobre ele. Portanto, se um objeto físico for movido, ele teve que ser movido por outro objeto ou força física. Pense num dominó, por exemplo. Se esse dominó cair, deve ter havido uma razão ou causa para isso. Uma rajada de vento, isto é, ar em movimento, deve ter atingido o dominó, ou um objeto caiu sobre ele (outro dominó, talvez). Mas o ponto é: o que quer que tenha movido o dominó também estava se movendo pois, do contrário, não teria movido o dominó.

Digamos que o dominó A tenha caído, ocasionando a queda subseqüente do dominó B. Mas eis a questão: O que fez o dominó A cair? Teoricamente, poderíamos prosseguir com essas perguntas para sempre, mas Aristóteles diz que não. Ele ensinava que o movimento teve que ter um início, para além do qual não poderíamos prosseguir. Mas o Primeiro Motor tinha que ter uma característica bastante particular. O Primeiro Motor não poderia ser movido, senão teríamos de perguntar o que o moveu. Portanto, o Primeiro Motor é um Motor Imóvel, e isto, Tomás de Aquino acrescenta, meio afoito para meu gosto, todo mundo sabe que é Deus.

O maior problema nessa história é que nem todo mundo concorda com Aristóteles, ou seja, nem todo mundo concorda que uma regressão infinita é impossível. Muitos cosmólogos modernos propõem um universo infinito, e isso não lhes dá nem um pouco de insônia.

Porém, este argumento nos ajudará a esclarecer o tópico aqui em discussão. A maioria das pessoas despreza o fato de que no contexto da disputa na qual as Cinco Provas se inserem o argumento cosmológico desempenha um papel importante. Tomás de Aquino está lidando com a objeção de que a existência de Deus seria desnecessária porque poderíamos explicar o mundo sem Deus. Se pensarmos a respeito, veremos que é exatamente o que muitos ateístas modernos e devotos do cientificismo dizem.

Ora, o ponto crucial do argumento de Tomás de Aquino é demonstrar que nenhum sistema é auto-explicativo. As leis da física explicam os movimentos no interior do cosmos, mas elas não podem explicar a existência do próprio cosmos. Em outras palavras, este argumento levanta a seguinte questão: Por que há algo ao invés do nada? O ponto crucial deste argumento é mostrar que a questão não pode ser respondida de dentro do próprio sistema.

Assim, chegamos a uma dicotomia cabal. Ou o mundo teve um Início, que situa-se fora do mundo e é completamente distinto de qualquer coisa do Cosmos (um Motor que move sem ser movido), ou o cosmos de uma forma ou de outra sempre existiu e sempre existe.

Se a primeira hipótese for a verdadeira, então temos de buscar um sentido para nossa existência fora da ciência; conforme notara Wittgenstein, se houver algum sentido no mundo, ele tem de estar fora do mundo. Por outro lado, se o mundo não teve começo então não pode ter sentido também. É simplesmente assim. A pergunta “Por quê?” seria não apenas irrelevante, mas sem sentido. Ela não pode nem mesmo ser perguntada.

Portanto, voltamos aonde começamos. A ciência pode responder à pergunta “Como?”. Como os furacões se formam? Como os organismos se adaptam ao meio-ambiente? etc. Mas a ciência não pode perguntar, muito menos responder, questões como: Por que há algo ao invés do nada? Qual o sentido da vida humana?

Mas sinto que estou indo longe demais, então vou continuar esse assunto na próxima semana, quando abordarei a questão da evolução.

E que nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo, que criou o universo sem a ajuda de cientistas ou pseudo-teólogos, pelas intercessões de Santo Inocêncio do Alaska e do abençoado Ancião Sofrônio Sakharov, tenha piedade de nós e conceda-nos uma entrada rica em Seu reino eterno.

Meu nome é Clark Carlton, falando para a Ancient Faith Radio.

3 de dezembro de 2007

O que os Santos Padres ensinam sobre as doenças

por Pe. Ambrósio (Alexey) Young

Este é o terceiro e último livreto da série "O que os Santos Padres ensinam sobre...", de autoria do Pe. Alexey Young, atual Hieromonge Ambrósio. Considerado pele seu pai espiritual, o Pe. Serafim Rose, como o melhor livreto da série, Pe. Ambrósio acompanhou de perto a trajetória do Mosteiro de São Germano do Alaska e seus monges. Ele é um convertido do catolicismo romano, tendo abraçado a fé cristã ortodoxa por influência dos monges desse mosteiro.

Introdução

Todas as pessoas, sejam cristãs ou não, sabem que cedo ou tarde serão acometidas por doenças e desconfortos físicos. A dor física é algo universal; ninguém escapa dela. Portanto, o que importa mesmo é nosso entendimento sobre as doenças, e não o sofrimento ou a intensidade delas. O entendimento é tudo.

Se acharmos que nossa vida deva ser encarada como se fossem longas e confortáveis “férias”, então qualquer sofrimento que surja nos parecerá insuportável. Mas, se enxergássmoes a vida como um tempo de aflição, correção e purificação, então o sofrimento se tornaria não apenas suportável, mas até mesmo útil.

Eis o que Santo Ambrósio de Milão ensina sobre a postura cristã diante das enfermidades: “Se a ocasião exigir, o homem sábio aceitará prontamente as enfermidades do corpo e até mesmo o oferecerá à morte, por amor a Cristo.... Este homem não é afetado em espírito nem sucumbe às dores do corpo caso sua saúde titubeie. Ele é consolado por sua batalha nas virtudes, rumo à perfeição” (Obras Exegéticas). Ao ouvir isto, o homem mundano provavelmente exclamará: “O quê?! Como pode um homem ‘aceitar prontamente’ as doenças e as enfermidades?”

Para um infiel, trata-se de algo realmente incompreensível. Ele é incapaz de conciliar o fato do sofrimento humano com seu próprio conceito de Deus. Para ele, a própria noção de que Deus permite a dor é repugnante; em geral, ele encara qualquer tipo de sofrimento como se fosse um mal no sentido absoluto.

Sem o auxílio da Revelação Divina, o homem é incapaz de compreender a origem e a causa da dor, muito menos seu propósito. Muitas pessoas, sem o devido auxílio do correto entendimento, são atormentadas pelo medo da dor, amedrontadas pelo pensamento de uma doença prolongada, e rapidamente saem em busca de alívio médico, pois crêem que a doença é fruto do acaso.

Se as enfermidades são apenas fruto do “azar” (o que até o bom senso afirma não ser assim, já que muitas doenças são resultado de uma vida imoderada), então é de fato permissível, e até mesmo desejável, utilizar de todos os meios disponíveis para evitar a dor proveniente da doença e mesmo a doença em si. Ademais, quando uma deonça se torna irreversível e terminal, a sabedoria mundana ensina que é aceitável acabar com a vida do paciente – a chamada eutanásia, ou “morte misericordiosa” – já que, segundo este ponto de vista, o sofrimento no leito de morte é inútil e cruel, e, portanto, “mau”.

Porém, mesmo em nosso dia-a-dia, sabemos que o sofrimento não é um “mal absoluto”. Por exemplo, quando nos submetemos ao bisturi do cirurgião para que uma parte enferma do corpo seja extirpada. A dor da operação é enorme, mas sabemos que ela é necessária para preservar a saúde e até mesmo a vida. Portanto, até sob um ponto de vsita estritamente materialístico, a dor pode servir a um bem maior.

Outra razão para que o sofrimento humano seja um mistério aos infiéis é o fato de que sua própria “idéia” de Deus é falsa. Eles ficam chocados quando lêem os Santos Padres dizerem: “Se Deus nos envia a fome, ou uma guerra, ou quaisquer calamidades, Ele o faz por causa de Seu imenso cuidado e bondade” (São João Crisóstomo, Homilia 7, Das Estátuas).

Eis o que o Ancião Macário de Optina escreveu a um amigo, na Rússia do século XIX: “Minha saúde está frágil como a tua, e não consigo deixar de sentir empatia por teu infortúnio. Mas a benevolente Providência não é apenas mais sábia do que nós: Ela também é sábia de uma maneira diferente. É este pensamento que nos dá sustento em todas as nossas provações, pois é um pensamento consolador como nenhum outro.”

Sábia de uma maneira diferente... É aqui que começamos a pereceber que o entendimento patrístico de Deus é contrário ao ponto de vista mundano. Na verdade, ele é único: não é especulativo, intelectual ou “acadêmico”. Conforme escreveu São Teófano, o Recluso: “O Cristianismo não é um sistema de doutrinas, mas sim uma via de restauração para o homem caído”. Portanto, o critério da fé – o conhecimento verdadeiro de Deus – não é intelectual. A medida da verdade, conforme escreveu o Professor Andreyev, “é a própria vida... Cristo falou a respeito disso de maneira clara, simples e definitiva: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (João 14:6). Isto é, Eu sou o Caminho para se perceber a Verdade; Eu mesmo sou a Verdade encarnada (tudo o que digo é verdadeiro)... e Eu sou a Vida (sem Mim não pode haver vida)” (Apologética Cristã Ortodoxa). Isto tudo está muito longe da sabedoria deste mundo.

Podemos acreditar ou não nas palavras de Cristo a respeito de Si mesmo. Se acreditarmos, e agirmos segundo nossa fé, então poderemos começar a subir a escada do conhecimento vivo, de uma maneira como nenhum livro ou filósofo é capaz de ensinar: Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o questionador deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? (I Coríntios 1:20).

Uma das dificuldades de se compilar um manual dos ensinamentos patrísticos sobre as doenças é que elas não podem ser separadas da questão da dor (por exemplo: a dor e o sofrimento psicológico que resultam de guerras, fomes etc.). Alguns trechos do que dizem os Santos Padres a respeito das doenças também servem de alicerce para o ensinamento a respeito das adversidades, que será o assunto do quarto livro nesta série.

Outra dificuldade é que os Santos Padres às vezes utilizam palavras como “pecado,” “castigo” e “recompensa” sem se limitarem ao significado que nossa sociedade moderna lhes dá. Por exemplo, “pecado” é uma transgressão da Lei Divina. Mas, segundo o pensamento patrístico, também é algo mais do que isso: é um ato de “traição”, de infidelidade ao amor de Deus pelo homem e uma “violação arbitrária da união sagrada [do homem] com Deus” (Andreyev, Ibid.). O pecado não é algo que devemos entender dentro de um quadro estritamente legalista de “crime e castigo”; a infidelidade do homem é uma condição universal, não limitada a apenas esta ou aquela transgressão. Ele está sempre conosco, porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus (Romanos 3:23).

O relacionamento de Deus com o homem não está limitado às nossas idéias legalistas de recompensa e castigo. A salvação, que é o principal objetivo da vida cristã, não é uma “recompensa”, mas um dom dado livremente por Deus. Não podemos “adquiri-la” ou “merecê-la” por nada que façamos, não importa o quanto acharmos que somos piedosos ou modestos.

No dia-a-dia, é natural acreditamos que as boas ações devam ser recompensadas e os crimes punidos. Mas nosso Deus não “pune” com base nos padrões humanos. Ele nos corrige e castiga, da mesma maneira que um pai que ama seus filhos os corrige, ou seja, para lhes mostrar o caminho certo. Mas isso não é o mesmo que ser “condenado” a uma “pena” de dor e sofrimento por causa de algum crime cometido. Nosso Deus não é vingativo; Ele é a todo momento perfeitamente cheio de amor por nós, e Sua justiça nada tem a ver com os padrões de justiça humanos.

Ele sabe que não podemos nos aproximar dEle sem pureza de coração, e Ele também sabe que não podemos adquirir esta pureza a menos que estejamos livres de todas as coisas: livres do apego ao dinheiro e à propriedade, livres das paixões e do pecado, e até mesmo desapegados da súde corporal, se for este o obstáculo entre nós e uma verdadeira liberdade diante de Deus. Ele nos instrui, tanto através da Revelação quanto da correção, mostrando-nos como podemos adquirir esta liberdade, pois conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará (João 8:32). Como ensina São João Cassiano:

Deus “te guia por um degrau ainda mais elevado, em direção àquele amor que é livre do medo. É através disto que tu começas a praticar naturalmente e sem esforço todas aquelas coisas que originalmente tu praticaras por temor a Deus e ao castigo, mas agora tu não mais as praticas por medo do castigo, mas por amor à própria Bondade, e ao deleite na virtude” (Institutos).

Tendo em mente este significado espiritual mais profundo de “pecado” e “castigo,” podemos continuar nosso estudo a respeito dos discursos divinamente sábios dos Santos Padres relativos às enfermidades, agradecendo a Deus, pois “nossa Fé foi feita segura por Santos sábios e inteligentes” (São Cosmas Aitolas), e “em verdade, conhecer a si mesmo é a coisa mais difícil de todas”, conforme ensinou São Basílio, o Grande. Os Santos Padres indicam o caminho. Suas vidas e escritos agem como um espelho através do qual podemos nos medir, oprimidos que estamos pelas paixões e enfermidades. As doenças são um dos meios pelos quais podemos aprender o que nós realmente somos.

I. A origem e a causa da dor

Porque sabemos que toda a criação, conjuntamente, geme e está com dores de parto até agora.

Romanos 8:22



“O caminho da salvação que leva à vida eterna é estreito e apertado (Mateus 7:14). Ele é indicado tanto pelo exemplo santo de nosso Senhor como por Seu santo ensinamento. O Senhor profetizou a Seus discípulos e seguidores que no mundo, isto é, durante sua vida terrena, eles teriam tribulações (João 16:33; 15:18; 16:2-3).... Está claro que aflições e sofrimentos são lançados pelo próprio Senhor a Seus verdadeiros escravos e servos durante sua vida na terra” (Bispo Ignácio Brianchaninov, A Arena).

Mas por quê? Por que “aflições e sofrimentos”, juntamente com as doenças, são “lançados” a nós? O ensinamento dos Santos Padres mostra como o sofrimento deve ser compreendido no contexto do primeiro homem criado e sua subsequente queda em pecado.

No início não havia dor, nem sofrimento, nem enfermidades ou morte. O homem era “alheio ao pecado, às aflições, às preocupações e às grandes necessidades” (São Simeão, o Novo Teólogo, Homilia 45).

Se Adão e Eva não tivessem transgredido, “eles com o tempo teriam ascendido a mais perfeita glória e, devidamente mudados, teriam se aproximado de Deus...e da alegria e do júbilo com os quais, então, seríamos preenchidos através da irmandade um com o outro que, em verdade, seriam inefáveis e além do pensamento humano” (Ibid.). Portanto, não haveria sofrimento, não haveria doenças, e, consequentemente, não haveria necessidade de medicina.

“Mas quando o homem foi enganado e seduzido pelo perverso demônio...Deus veio ao homem como um médico vai a um homem doente” (São João Crisóstomo, Homilia 7, Das Estátuas). Deus desceu ao Éden à tardinha e perguntou a Adão, onde estás? (Gen. 3:9). Sua primeira manifestação ao homem após o pecado da desobediência não foi como a de um Juiz vingativo, “pois Deus, quando encontra um pecador, não pensa em fazê-lo pagar a pena, mas sim como corrigi-lo e melhorá-lo” (São João Crisóstomo, Ibid.).

O homem, a criatura, havia sucumbido à tentação de ser como Deus, o Criador – algo que vai de encotro a toda razão ou possibilidade. Este primeiro pecado não trouxe consigo a “divindade”, mas sim a dor, a doença e a morte – e não foi algo “por acaso”, mas sim por uma razão corretiva específica: para que o homem saiba, de uma vez por todas, que ele não é “como Deus”.

Portanto, o Médico Celestial “fez o corpo [do homem] sujeito a muitos sofrimentos e doenças, para que o homem pudesse aprender com sua própria natureza que ele não deve nunca mais pensar” que pode ser como Deus (São João Crisóstomo, Homilia 11, Das Estátuas). Deus disse a Eva: em dor darás à luz filhos (Gênesis 3:16); e a Adão: maldita é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela todos os dias da tua vida. Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra (Gênesis 3:17,19).

É extremamente importante entender isto logo de início, pois se não compreendermos esta verdade a respeito da natureza do homem caído então nada mais do que os Santos Padres ensinam sobre este assunto fará sentido. Pelo contrário, “se pudermos entender isto, seremos capazes de aprender a respeito de nós mesmos e seremos capazes de conhecer a Deus e adorá-Lo como Criador” (São Basílio, o Grande, Hexaemeron). “O pecado gera o mal, e o mal gera o sofrimento”, escreveu o Professor Andreyev; “no entato, este mesmo sofrimento, que teve sua origem com Adão e Eva, é uma bênção para todos nós, pois nos obriga a compreendermos como nossa falta de fé em Deus é danosa para nossas almas, e até mesmo para nossos corpos” (Apologética Cristã Ortodoxa).

II. O Propósito das Enfermidades


E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados.

Romanos 8:17


Nosso Salvador e os Santos Padres ensinam que a única procupação nesta vida deveria ser a salvação de nossas almas. O Bispo Ignácio ensinou: “A vida terrena – este breve período – é dado ao homem pela misericórdia do Criador para que o homem o utilize para sua salvação, isto é, para que se restaure da morte para a vida.” (A Arena). Portanto, devemos “olhar todas as coisas deste mundo como uma sombra passageira, e não nos apegarmos de coração a nada...pois não nos atentemos às coisas que se vêem, mas sim às que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, enquanto as que se não vêem são eternas” (São João de Kronstadt, Conselhos Espirituais). Para nós, cristãos ortodoxos, o centro das nossas vidas não é aqui, mas lá, no mundo eterno.

Quanto tempo viveremos, qual doença ou enfermidade precederá nossa morte – tais coisas não são preocupações adequadas a cristãos ortodoxos. Embora cantemos “muitos anos” uns aos outros nos nossos onomásticos e em outras celebrações, fazemos isso apenas porque a Igreja, em sua sabedoria, sabe que de fato precisamos de “muitos anos” para que nos arrependamos de nossos pecados e nos convertamos, e não porque ter uma vida longa tem algum valor em si. Deus não está interessado em nossa idade quando nos apresentarmos em Seu Julgamento, mas sim se nos arrependemos. Ele não está preocupado se morremos de ataque cardíaco ou de câncer, mas sim se nossa alma está saudável.

Portanto, “não devemos temer nenhum mal humano salvo o pecado; nem a pobreza, nem as doenças, nem os insultos, nem as malícias, nem a morte” (São João Crisóstomo, Das Estátuas), pois estes “males” são apenas palavras; eles não são reais para aqueles que vivem em função do Reino dos Céus. A única e verdadeira “calamidade” desta vida é ofender a Deus. Se tivermos esta compreensão básica do sentido da vida, então o significado espiritual das enfermidades físicas poderá se abrir para nós.

No capítulo anterior, aprendemos como o Deus Onisciente permitiu que o sofrimento entrasse no mundo de modo a nos mostrar que não passamos de criaturas. Esta é uma lição que ainda não foi aprendida pela raça de Adão, que, no seu orgulho, sempre busca ser como “deuses”: pois cada pecado é uma renovação do pecado dos primeiros homens, um afastamento voluntário de Deus para si próprio. Em verdade, nós nos colocamos no lugar de Deus, adorando a nós mesmo ao invés do Criador. Portanto, o sofrimento das doenças e enfermidades serve o mesmo propósito que tinha no começo: é, pois, um sinal da misericórdia e do amor de Deus. Como dizem os Santos Padres àqueles que estão enfermos: “Deus não vos esqueceu; Ele cuida de vós” (Santos Barsanúfio e João, Philokalia).

Ainda assim, é difícil aceitarmos que a doença possa ser um sinal do cuidado de Deus para conosco – isto é, a menos que compreendamos a relação que existe entre corpo e alma. O Ancião Ambrósio de Optina falou a respeito disso em uma carta à mãe de uma criança muito doente:

“Não devemos nos esquecer que em nossa era ‘sofisticada’, até mesmo as crianças pequenas são machucadas espiritualmente pelo que vêem e escutam. Por causa disso, a purificação é necessária, e isto apenas é realizado através do sofrimento físico... Você deve entender que a bem-aventurança do Paraíso não é concedida a ninguém sem sofrimento”.

São Nicodemos da Santa Montanha explicou que o homem é um ser dual, feito de corpo e alma, e que “há uma interação entre o corpo e a alma” (Conselhos), cada um agindo sobre o outro e, de fato, se comunicando um com o outro. “Quando a alma está enferma, nós geralmente não sentimos dor”, diz São João Crisóstomo. “Mas se o corpo sofre apenas um pouco, nós nos esforçamos ao máximo para nos livrarmos da enfermidade e sua dor. Portanto, Deus castiga o corpo em função dos pecados da alma, de modo que, castigando o corpo, a alma também possa receber alguma cura.... Cristo fez isto com o Paralítico quando disse: Eis que já estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior. O que aprendemos disto? Que a enfermidade do Paralítico havia sido produzida por seus pecados” (Homilia 38, Do Evangelho de São João).

Em certa ocasião uma mulher foi levada a São Serafim de Sarov. Ela estava terrivelmente debilitada, e não conseguia andar pois seus joelhos estavam dobrados até o seu peito. “Ela disse ao Ancião que havia nascido na Igreja Ortodoxa, mas após se casar com um dissidente, abandonara a Ortodoxia, e por sua infidelidade Deus a havia punido repentinamente... Ela não conseguia mover as mãos ou os pés. São Serafim perguntou à mulher enferma se agora ela acreditava em sua Mãe, nossa Santa Igreja Ortodoxa. Ao ouvir a resposta afirmativa, ele a mandou que fizesse o sinal da Cruz da maneira correta. Ela disse que não conseguia sequer levantar a mão. Mas quando o Santo orou e ungiu suas mãos e seu peito com óleo de uma lamparina de ícone, sua enfermidade imediatamente a deixou”. Eis que já estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior!

Este elo entre corpo e alma, pecado e enfermidade, é evidente: a dor nos diz que há algo de errado com a alma, que não apenas o corpo está enfermo, mas a alma também está. E é precisamente desta maneira que a alma comunica suas dores ao corpo, despertando o homem ao autoconhecimento e ao desejo de voltar-se a Deus. Lemos isto muitas e muitas vezes nas vidas dos santos, pois a enfermidade também nos ensina que o nosso “eu verdadeiro, aquilo que é principalmente o homem, não é o corpo visível, mas sim a alma invisível, o ‘homem interior’” (São Nicodemos da Santa Montanha, Moralidade Cristã).

Mas será que isto significa que o homem que continuamente goza de boa saúde está espiritualmente em “boa forma”? De modo algum, pois o sofrimento assume muitas formas, quer seja no corpo, na mente ou na alma. Quantas pessoas que possuem uma saúde excelente não lamentam que a vida “não vale a pena”? São João Crisóstomo descreve este tipo de sofrimento:

“Algumas pessoas pensam que gozar de boa saúde é uma fonte de prazer. Mas não é bem assim. Pois muitos que possuem boa saúde já desejaram mil vezes estarem mortos, não sendo capazes de suportar os insultos que lhes são infligidos... Pois mesmo que nos tornássemos reis e vivêssemos majestosamente, nos encontraríamos cercados por muitos problemas e tristezas... Por necessidade, os reis possuem tantas tristezas quanto há ondas no oceano. Portanto, se a realeza é incapaz de deixar a vida livre de tristezas, o que mais neste mundo poderia realizar isto? De fato, nada nesta vida” (Homilia 18, Das Estátuas).

Os protestantes frequentemente “determinam” saúde em “Nome de Jesus”. Eles consideram que saúde é algo do qual o cristão tem direito. Do seu ponto de vista, a enfermidade é resultado de falta de fé. Isto é exatamente o oposto do ensinamento ortodoxo, conforme ilustrado na vida de Jó no Velho Testamento. São João Crisóstomo diz que os santos servem a Deus não porque esperam receber qualquer tipo de recompensa, seja espiritual ou material, mas simplesmente porque amam Deus: “pois os santos sabem que a maior recompensa de todas é poder amar e servir a Deus.” Portanto, “Deus, desejando mostrar que não era por causa de alguma recompensa que Seus santos Lhe serviam, tirou de Jó toda sua riqueza, lançando-o à pobreza, e permitiu que lhe sobrecaíssem terríveis enfermidades”. E Jó, que não estava vivendo por nenhuma recompensa nesta vida, ainda assim permaneceu fiel a Deus (Homilia I, Das Estátuas).

Assim como as pessoas saudáveis não estão sem pecado, Deus também permite algumas vezes que os verdadeiros justos sofram, “enquanto modelo aos fracos” (São Basílio, o Grande, As Regras Maiores). Pois, como ensina São João Cassiano, “um homem é melhor instruído e formado por meio do exemplo alheio” (Institutos).

É o que constatamos no caso bíblico de Lázaro. “Embora sofresse de dolorosas feridas, ele nunca resmungou contra o Homem Rico nem nunca lhe pediu coisa alguma....Como resultado disto, ele encontrou repouso no Seio de Abraão, como alguém que aceitou humildemente os infortúnios da vida” (São Basílio, o Grande, As Regras Maiores).

Os Padres da Igreja também ensinam que a enfermidade é uma maneira pela qual os cristãos podem imitar o sofrimento dos mártires. Assim, nas vidas de muitos santos, sofrimentos físicos intensos lhes sobrevinham no fim de suas vidas para que, por seu justo sofrimento, eles pudessem atingir o martírio físico. Um bom exemplo disto pode ser encontrado na vida do grande defensor da Ortodoxia, São Marcos de Éfeso:

“Ele estava doente há quatorze dias, e a doença, como ele mesmo dissera, tinha sobre ele o mesmo efeito que aqueles instrumentos de tortura de ferro aplicados pelos carrascos aos santos mártires, como se rodeassem suas costelas e órgãos internos, pressionando-os e causando-lhe uma dor absolutamente insuportável; de modo que aquilo que os homens não conseguiram fazer com seu santo corpo de mártir acabou sendo realizado pela enfermidade, segundo o inefável juízo da Providência, de modo que este Confessor da Verdade e Mártir e Consquistador de todos os sofrimentos possíveis e Vencedor aparecesse diante de Deus após passar por todo tipo de sofrimento, e isto até seu último suspiro, como ouro provado na fornalha, e de modo que graças a isto ele possa receber honras e recompensas eternas ainda maiores do Justo Juiz” (The Orthodox Word, vol. 3, nº 3).

III. As Enfermidades e a Oração


Tu, que crês quando estás bem, cuidado para que não te afastes de Deus no tempo dos infortúnios.
São João de Kronstadt



Nosso Salvador nos ensinou: Pedí, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Pois todo o que pede, recebe (Mat. 7:7-8).

Portanto, quando estivermos doentes, devemos orar pedindo entendimento sobre nossa enfermidade, paciência para suportá-la e, se for a vontade de Deus, para sermos livres dela. Devemos também pedir as orações de outras pessoas e especialmente da Igreja, pois a súplica de um justo pode muito na sua atuação (Tiago 5:16).

“Qualquer pessoa que estiver doente deve pedir a oração de outras pessoas, para que sua saúde lhe seja restaurada; para que, através da intercessão de outros, nossos debilitados corpos e nossas titubeantes obras recuperem sua saúde.... Aprende, tu que estás enfermo, a adquirir a saúde através da oração. Busca as orações dos outros, roga à Igreja que ore por ti e Deus, por Sua consideração pela Igreja, dará aquilo que talvez Ele recusasse a ti” (Santo Ambrósio, Da Cura do Paralítico).

A maior oração pública da Igreja para aqueles que se encontram doentes é o Ofício da Santa Unção. Esse ofício, particularmente longo e repleto de trechos das Escrituras, e que contém diversas alusões a figuras bíblicas curadas pelo poder de Deus, fornece, de maneira concentrada, o ensinamento da Igreja sobre a cura.

Esse ofício chama a Cristo de “Médico e Ajudante do sofrimento”, invocando sobre a pessoa doente, por meio da unção, a graça do Espírito Santo, que cura tanto almas quanto corpos. Dado que Deus “misericordiamente nos deu ordens para desempenharmos a Santa Unção sobre seus servos doentes”, o próprio Cristo é tido como o “crisma incorruptível” que, nos velhos tempos, escolheu o ramo de oliva para mostrar a Noé que o Dilúvio havia terminado. (Desde os tempos antigos, o óleo de oliva era usado para produzir o Santo Óleo). Nos tempos do Dilúvio, o ramo de oliva simbolizava a tranquilidade e a segurança; é por isso que hoje o sacedote reza pedindo que o Salvador, por meio da “tranqüilidade do selo de Tua misericórdia [a unção com o óleo]”, cure o sofredor.

Reconhecendo que as doenças podem advir da atividade de poderes demoníacos, o sacerdote pede: “Que nenhuma interposição dos malignos demônios toque nos sentidos daquele que está marcado pela Tua divina unção”. Mostrando também que a Igreja admite a conexão entre pecado e sofrimento, o sacerdote roga para que, por meio dessa unção, o “sofrimento daquele que está sendo atormentado pela violência das paixões” possa ser eliminado.

Tal ofício explora diversos aspectos do pecado, do sofrimento e da cura; trata-se de um ofício profundo e muito exaltado de oração e intercessão. Há um ponto muito importante a ser ressaltado: durante a Santa Unção, imploramos a Deus para que remova a doença – mas, no lugar dela, pedimos que Ele dê “a alegria da satisfação” (ungir-se a si mesmo é chamado nos Salmos de óleo da satisfação), de maneira que a pessoa anteriormente doente possa agora “glorificar Teu divino poder”. Portanto, um dos propósitos da cura é permitir que o sofredor retorne ao serviço saudável e ativo a Deus. É dessa maneira que nosso Salvador curou a sogra de Pedro: imediatamente após a febre ter cessado, ela levantou-se e ministrou sobre eles. Trata-se de algo muito importante: quando nos livramos das tormentas das dores físicas, Deus espera que enchamos nossas bocas de louvor a Ele, que sirvamos a Ele corrigindo nossos pecados, que vivamos somente por Ele e pelo século porvir e que desprezemos este mundo.

Muitas pessoas só descobrem a oração quando estão doentes. E muitos participam piedosamente nas orações públicas da Igreja mas só descobrem, quando estão doentes, que desprezaram os tesouros da oração privada ou interior. São Gregório Nazianzo, um homem que rezava intensamente mesmo quando estava bem de saúde, durante sua última doença exclamou: “O tempo é ligeiro, a batalha é grande, e minha doença é severa, reduzindo-me quase à paralisia. O que mais me resta senão rezar a Deus?” (Cartas).

Na doença, a oração é capaz de reveler autênticos e duradouros tesouros, “pois se tu tens vigor corporal, a usurpação que a doença provoca interrompe qualquer alegria que possas ter desta fonte...porque tudo o que pertence a este mundo está sujeito à danação e é incapaz de nos dar prazer duradouro. Mas a piedade a as virtudes da alma são exatamente o contrário, pois sua alegria dura para sempre...Se tu verteres contínuas e fervorosas orações, nenhum homem será capaz de despojá-lo de seus frutos, pois tais frutos estão enraizados nos céus e protegidos de toda destruição porque estão além do alcance mortal” (São João Crisóstomo, Das Estátuas).

Dois acontecimentos das vidas dos santos mostram como a oração pode ser simples mas incorruptível. Na vida do Ancião Partênio, ficamos sabendo que, durante sua doença terminal, mesmo depois de ter recebido a Santa Unção, ele continuou a cumprir sua regra de orações, rezando todos os Salmos diariamente. No dia anterior a seu repouso, eis o que ele disse a seus filhos espirituais:

“Logo, logo partirei. Ontem eu já não consegui completar meus Salmos – só metade deles”.

“Quer dizer, Padre, que até ontem tu cumprias todas as orações como de costume?”

“Sim, o Senhor me ajudou; além disso, eu as rezo de memória; eu não consigo rezá-las com meus lábios; não consigo respirar; mas ontem eu não consigui rezá-las nem de memória, pois ela está falhando. Eu me apego apenas à Oração de Jesus e às orações à Mãe de Deus” (Orthodox Life, nº3, 1969).

E na vida de Santo Abba Dorotheus, lemos sobre a morte tocante de seu discípulo, São Dositheus, que permaneceu no mosteiro por apenas cinco anos, mas “morreu em obediência, jamais fazendo sua própria vontade e por apego”. Ele sempre praticava a Oração de Jesus, e quando sua doença tornou-se severa, Santo Abba Dorotheus disse-lhe:

“Dositheus, preste atenção à Oração; não deixe que se prive dela”.

“Muito bem, Padre”, respondeu o monge, “apenas reze por mim”.

Quando ele piorou ainda mais, Santo Abba Dorotheus disse-lhe:

“Bem, Dositheus, como está a Oração? Continua como antes?”

Ele respondeu-lhe: “Sim, Padre, pelas suas orações”.

Porém, quando a situação tornou-se extremamente difícil para ele e a doença ficou tão severa que teve de ser carregado numa maca, Santo Abba perguntou-lhe:

“Como está a Oração, Dositheus?”

Ele respondeu: “Perdoa-me, Padre, não consigo continuá-la”. Então, Santo Abba disse-lhe:

“Deixe a Oração, mantendo Deus em sua mente e representando-O a si mesmo como se Ele estivesse diante de ti” (The Orthodox Word, vol. 5, nº 3).

Um exemplo glorioso e inspirador a respeito do lugar que a oração deve ocupar em tempos de doença é o relato de São Gregório Nazianzo sobre a doença de seu próprio pai:

“Ele sofreu de doença e dor física, nos tempos da santa e ilustre Páscoa, a Rainha dos Dias, a brilhante noite que disspa as trevas do pecado. Explicarei rapidamente o tipo de doença que ele sofreu: todo seu corpo estava queimando em febre; suas forças lhe deixaram, ele não podia comer, seu sono o abandonara, e ele se encontrava muito perturbado. Sua boca tinha tantas úlceras que era difícil e até mesmo perigoso engolir água. O conhecimento dos médicos e a oração de seus amigos, por mais dedicadas e ardentes que fossem, bem como toda atenção possível, não lhe valeram de nada. Nesse estado desesperador, sua respiração era rápida e breve e ele não tinha percepção das coisas à sua volta.

“O horário da Divina Liturgia estava chegando, e a devida ordem e silêncio estavam sendo mantidos para os ofícios solenes. Neste momento, meu pai foi erguido por Aquele que ressuscita os mortos. Em princípio, ele se moveu lentamente, e depois de maneira mais confiante. Então, com voz débil e indistinta, ele chamou um servo pelo nome para que trouxesse suas roupas e o segurasse pelas mãos. O servo aproximou-se espantado e alegremente o acompanhou, enquanto ele, apoiando-se no servo como se fosse um cajado, imitou Moisés na montanha em oração...

“Ele retirou-se de volta à sua cama e, após comer e dormir um pouco, sua saúde lentamente foi se restaurando, de maneira que na primeira segunda-feira após a Páscoa ele já conseguia entrar na igreja...

“Durante sua doença, em nenhum momento ele estava livre da dor. Seu único alívio foi a Divina Liturgia, na qual sua dor cedeu, como que por decreto” (Da Morte de Seu Pai).

IV. A visão cristã sobre os remédios


Reconhecer-se como merecedor de castigo temporal e eterno precede o conhecimento do Salvador e leva ao conhecimento do Salvador.Bispo Ignácio Brianchaninov



Quando perguntaram a São Basílio, o Grande, se ir ao médico e tomar remédios eram coisas compatíveis com a piedade, ele respondeu:

“Toda arte é um dom de Deus, feita para preencher aquilo que falta na natureza...Depois que fomos informados [nos tempos da Queda] que retornaríamos à terra de onde viemos – e fomos unidos a uma carne alvo de dor e destinada à morte, sujeita à doença por causa do pecado –, as ciências médicas nos foram dadas por Deus para aliviar a doença, mesmo que apenas um pouco” (As Regras Maiores).

Portanto, podemos recorrer a médicos e tomar remédios, pois essa ciência é um dom de Deus. “Deus nos deu as ervas da terra e suas drogas para a cura do corpo, ordenando que o corpo, que vem da terra, seja curado pelas diversas coisas da terra...Quando o homem caiu do Paraíso, ele imediatamente foi colocado sob a influência das desordens e enfermidados da carne...Deus, portanto, deu os remédios ao mundo para conforto, cura e cuidado do corpo, permitindo seu uso por aqueles que não conseguem confiar completamente em Deus” (São Macário, o Grande, Homilia 48).

Quando ir ao médico, e com qual freqüência, é uma questão de bom senso. Mas quando formos, não devemos “esquecer que ninguém pode ser curado sem Deus. Quem se entregar à arte da cura deve também submeter-se a Deus, e Deus então enviará ajuda. A arte da cura não é um obstáculo à piedade, mas tu deves praticá-la com temor a Deus” (São Barsanúfio e João, Philokalia).

“Depositar nossa esperança nas mãos mortais de um médico é ato digno de um animal irracional. Mas é precisamente assim que se comportam os infelizes que, sem hesitar, chamam seus médicos de ‘salvadores’...Por outro lado, é tolice rejeitar inteiramente os benefícios da arte médica” (São Basílio, o Grande, As Regras Maiores).

O Ancião Nectário de Optina aconselhava que devêssemos ir ao médico não para sermos “curados”, mas apenas para sermos “tratados” – reconhecendo assim que nesta vida jamais seremos perfeitamente “curados” ou “saudáveis”. E ao escrever a um amigo gravemente doente, o Ancião Macário de Optina disse:

“Dê-lhe [ao paciente] meus mais calorosos cumprimentos e desejos de que se recupere prontamente. Diga a ele também que mesmo que sua esperança e sua fé sejam fortes, ele não deve desprezar a ajuda de um médico. Deus é o Criador de todos os homens e de todas as coisas: não apenas do paciente, mas também do médico, da sabedoria do médico, das plantas medicinais e de seu poder curativo”.

São Basílio, o Grande, ensina que “definitivamente não devemos depositar nossas esperança de alívio da dor nos remédios, mas confiar que Deus não permitirá que sejamos provados além do que podemos suportar”. Ele se refere àquelas pessoas que correm ao médico por qualquer pretexto, e que se esquecem desta importante lição: “Façamos ou não uso das artes médicas, devemos nos apegar ao nosso objetivo de agradar a Deus e ajudar a alma, cumprindo este preceito: Quer comais quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus (I Coríntios 10:31)”.

Este Santo Padre explica também que “às vezes, quando Deus julga por bem, Ele nos cura em segredo, sem meios visíveis [tais como médicos e drogas]. Outras vezes, Ele quer o uso de remédios para nossas enfermidades”.

Portanto, “quando sofremos o golpe da doença nas mãos de Deus, devemos primeiro pedir a Ele entendimento, de maneira que possamos saber por que Ele nos infligiu tal golpe. Em segundo lugar, devemos pedir que ele nos livre de nossas dores ou, pelo menos, que nos dê paciência para aguentá-las”. De posse dessa postura, podemos de boa consciência buscar tratamento médico.

Porém, àquelas pessoas cuja confiança em Deus é muito forte e profunda, há um chamado maior: suas almas, percebendo seus pecados e o propósito da vida, “suportam todas as aflições que lhes são enviadas em silêncio e, se possível, sem recorrer aos remédios, cumprindo estas palavras: Sofrerei a ira do Senhor, porque pequei contra Ele (Miquéias 7:9)” (São Basílio, o Grande, As Regras Maiores).

Este caminho de total entrega à Providência divina é muito elevado e difícil, e não é algo dado a todos os homens. Mas devemos ao menos conhecê-lo, para que evitemos a auto-satisfação e o “contentamento” com nossas próprias atitudes. É nas vidas dos santos monges que aprendemos tal caminho de abnegação e suprema confiança na vontade de Deus. O seguinte episódio da vida do Ancião Macário do Eremitério do Mar Branco demonstra como esse monge justo desdenhou a medicina terrena em favor da medicina celestial:

Após vinte e oito anos de severas batalhas monásticas, a incansável força desse monge e pai espiritual começou a fraquejar. No final de 1839, já tendo experimentado ataques de intensas doenças, ele não reclamava nem procurava auxílio médico. Quando seus dentes doíam muito, Ancião Macário tinha o costume de sentar-se à mesa, onde havia uma cesta com sobras de pão do jantar. Dessa cesta, ele tomava as migalhas e comia até última parte macia delas. Uma vez o monge encarregado do refeitório compeliu-o a revelar porque ele roia as crostas. "Os Santos Padres, disse Macário, comeram essas crostas com oração, e eu, um pecador, tocando essas crostas com minha boca pecaminosa, peço ao Senhor, que Ele, por Sua misericórdia, cure meus dentes doloridos e pelas orações dos Santos Padres, meus dentes melhoraram" (Orthodox Life, n° 16, 1971).

Essa confiança simples em Deus é comum entre as grandes almas. Uma simplicidade similar pode ser encontrada na vida do monge Marcos de Sarov. "Perto do fim de sua vida, o Ancião Marcos sofria muito por conta de suas pernas: por longos períodos permanecidos em pé, em oração, e por laboriosas caminhadas pela floresta, as pernas do Ancião Marcos tornaram-se hidrópicas, inchadas e cobertas de feridas, de modo que por algum tempo ele esteve incapaz de andar. Alguns dos irmãos de Sarov, sentindo compaixão pelo Ancião, por seu incômodo, aconselharam-no a procurar auxílio de médicos terrenos. "O Ancião, no entanto, não prestou atenção nesse conselho, e entregou-se complemente ao Curador Celestial de almas e corpos. Com fé, ele pegou algum óleo da lamparina que queimava diante do ícone da Santíssima Mãe de Deus da Fonte Vivificante, localizada na catedral do Eremitério de Sarov, venerado como óleo milagroso e ungiu suas pernas doentes com esse óleo. Para espanto geral daqueles que sabiam de sua doença, logo ele estava complemente curado pelo auxílio da graça da Mãe de Deus, que não o fez envergonhar-se de sua esperança" (Orthodox Life, n° 6, 1970).

Logo depois que foi para o Mosteiro de Sarov, São Serafim de Sarov caiu doente. De acordo com o livro "A Vida de São Serafim de Sarov," seu corpo inteiro inchou e ele jazia paralisado com grande dor, na sua cama dura. Não havia médico, e a doença não respondia a nenhum tratamento. Aparentemente era hidropisia. Durou três anos, e metade desse tempo, o sofredor gastou na cama. Mas ele nunca murmurou: Ele havia entregue a si próprio, completamente, corpo e alma, ao Senhor, e orava a Ele sem cessar. Receoso que a doença pudesse se mostrar fatal, o abade, Anciã Pacômio, propôs-lhe firmemente enviá-lo a um médico. Mas o Santo, com firmeza ainda maior recusou auxílio médico: "Eu me entreguei complemente, Santo Ancião, ao verdadeiro médico de almas e corpos, Nosso Senhor Jesus Cristo e à Sua Imaculada Mãe. Mas se o Seu amor achar correto dê-me, pelo amor do Senhor, o Remédio Celestial [a Santa Comunhão]." Logo depois desse episódio, ele foi curado pela Mãe de Deus, que lhe apareceu numa visão junto com os Apóstolos Pedro e João.

Vivendo só para Deus e para a vida que há de vir, arrependendo-se a cada dia, desafiando-se constantemente a adquirir o Espírito Santo de Deus, homens e mulheres justos são capazes de usar seu sofrimento para subir ainda mais alto na escada da virtude, como fez o Hieromonge Partênio das cavernas de Kiev:

"Uma tosse sufocante não lhe dava descanso, e todos os seus ossos doíam. Mas ele continuava deitado, como antes, no banco estreito e duro, com um bom e paciente coração, apesar da sua grande enfermidade, dando graças ao Senhor por sua doença. Freqüentemente dizia: o que darei em troca ao Senhor por Ele ter me dado uma doença, além de todas as Suas outras bênçãos?" (Orthodox Life, n° 3, 1969).

V. A doença e a obra para a perfeição


Uma vida terrena sem pesares é um sinal claro de que o Senhor apartou Seu olhar do homem, e que esse homem está desagradando a Deus, ainda que externamente ele possa parecer reverente e virtuoso.
Bispo Ignácio Bríanchaninov



O padre asceta do deserto Santo Abba Dorotheus exorta seus discípulos a "ter o trabalho de descobrir onde eles estão: se eles deixaram suas cidades, mas ainda permanecem às suas portas, na lixeira, ou se foram avançaram muito ou pouco, se estão na metade do caminho, se andaram dois quilômetros para frente e dois para trás, ou mesmo cinco para frente e cinco para trás, ou se chegaram tão longe, na Cidade Santa e entraram na própria Jerusalém, ou se por acaso se encontram do lado de fora, incapazes de entrar" (Da Vigilância e Sobriedade).

A doença nos ajuda a ver "onde estamos" na estrada da vida: "A doença é uma lição de Deus e serve para nos ajudar em nosso progresso, se nós dermos graças a Ele" (São Barsanúfio e São João, Philokalia); "pois a regra número um que devemos observar é suportar todo golpe da doença com gratidão; pois elas nos são mandadas por causa de nossos pecados" (São João Crisóstomo, Homilia 38, De São João).

Ninguém deve usar a doença como uma desculpa para descansar dos esforços da vida espiritual. "Talvez alguns pensem que as doenças e a ausência de forças corporais retardem o trabalho da perfeição, já que os trabalhos e o dia-a-dia não podem continuar. Mas isso não é um obstáculo" (Santo Ambrósio, Jacó e a Vida Feliz).

Mesmo quando estamos presos na cama, temos que continuar a lutar contra as paixões, produzindo valiosos frutos de arrependimento. Esse trabalho de perfeição requer que adquiramos paciência e resignação. Que melhor meio de conseguir isso do que quando estamos presos por uma doença, na cama? São Tikhon de Zadonsk diz que no sofrimento podemos descobrir se nossa fé é viva ou só "teórica". O teste da verdadeira fé é a paciência no meio do sofrimento, pois "paciência é a armadura dos cristãos." "O que é seguir a Cristo?" ele pergunta. É "suportar todas as coisas, olhando para Cristo que sofreu. Muitos querem ser glorificados com Cristo, mas poucos buscam permanecer com o Cristo sofredor. Não apenas com tribulação, mas com muita tribulação entra-se no Reino de Deus."

Para aqueles que supõem que só podem progredir na vida espiritual quando todo o resto está "bem," São João Cassiano replica: "Vós não deveis pensar que possais encontrar virtudes quando não estiverdes irritados, pois não está em vosso poder evitar que ocorram problemas. Deveríeis, ao invés, procurar com paciência o resultado de vossa humilhação e resignação, pois a paciência depende de vossa vontade própria" (Institutos). Próximo do final de sua vida, São Serafim de Sarov sofreu de ulceração nas pernas. "Mesmo assim", conforme está registrado em sua biografia, "sua aparência era sempre radiosa e alegre, pois em espírito ele sentia aquela paz e júbilo divinos, que são as riquezas da gloriosa herança dos santos".

"Vós sois atacados por essas doenças", dizem os Santos Padres, "para que não partais esterilmente a Deus. Se puderes suportar e agradecer a Deus, essas doenças serão contadas a vosso favor, como trabalhos espirituais" (São Barsanúfio e João, Philokalia). O Bispo Teófano, o Recluso, explica: "suportando coisas desagradáveis com alegria, vós vos aproximais um pouco dos mártires. Mas se vós vos queixais, não só perdereis vosso compartilhar com os mártires, mas ainda sereis responsáveis por mais queixas. Por isso, alegrai-vos".

Para que nosso coração não fraqueje quando cairmos doentes, devemos mentalmente "beijar os sofrimentos de Nosso Salvador e imaginar como se estivéssemos com Ele enquanto Ele sofre abusos, ferimentos, humilhações...vergonha, a dor dos cravos, o furo da lança, o escorrimento de sangue e água. Se agirmos assim, receberemos consolação em nossas doenças. Nosso Senhor não permitirá que esses esforços fiquem sem recompensa" (São Tikhon de Zadonsk).

O Ancião Macário de Optina escreveu sobre isso a alguém que estava doente: "Gostei muito de saber por seus parentes que estás bravamente suportando o cruel flagelo de tua grave doença. Na verdade, assim como o homem da carne perece, o homem espiritual é renovado."

E para outro ele escreveu: "Louvado seja o Senhor por tu aceitares a tua doença tão mansamente! Suportar a doença com paciência e gratidão é algo altamente reconhecido por Ele, que freqüentemente recompensa os sofredores com Seus dons não perecíveis".

Pondere essas palavras: "ainda que nosso homem externo pereça, o homem interno é renovado".

Santo Ambrósio de Milão comparou um corpo enfermo com um instrumento musical quebrado e explicou como o "músico" poderá ainda produzir "música" agradável a Deus, sem seu instrumento: "Se alguém costuma cantar acompanhado por uma harpa e encontra a harpa quebrada, com suas cordas partidas... ele põe de lado a harpa e ao invés de procurar por suas notas, ele se delicia com sua própria voz”.

"Da mesma maneira, um homem doente pode colocar seu corpo de lado. E, assim, encontrar prazer no coração e conforto no conhecimento de que sua consciência está limpa. Ele se sustenta com as palavras de Deus e com os escritos proféticos, e mantendo essa doçura e alegria na alma, ele as abraça com a mente. Nada pode acontecer a ele porque a presença cheia da graça de Deus sopra a favor dele... ele está preenchido com tranqüilidade espiritual" (Jacó e a Vida Feliz).

É muito freqüente que as "músicas" espirituais mais agradáveis a Deus sejam produzidas no anonimato, por santos desconhecidos ou quase desconhecidos, porque tais "melodias" são as mais doces, pois são ouvidas somente por Deus. Uma dessas sofredoras modernas que viveu uma vida angelical, apesar de avançada e terrível moléstia, foi a Santa Nova Mártir da Rússia, Madre Maria de Gatchina.

Madre Maria sofria de encefalite (inflamação do cérebro) e de Mal de Parkinson. "Seu corpo todo se tornou imóvel como se estivesse acorrentada, sua face anêmica como uma máscara; ela podia falar, mas começou a falar com a boca semi-fechada, entre dentes pronunciando vagarosa e monotonamente. Ela estava complemente inválida e com necessidade constante de ajuda e de cuidadosa atenção. Normalmente, essa doença desenvolve-se com profundas modificações psicológicas, de maneira que freqüentemente tais pacientes terminam em hospitais psiquiátricos. Mas Madre Maria, fisicamente inválida, não só não degenerou psiquicamente, como ainda revelou extraordinários aspectos de personalidade e caráter não característicos de tais pacientes: tornou-se extremamente mansa, humilde, submissa, não exigente, concentrada em si própria; ela entrou em oração constante, suportando sua difícil condição sem o mais leve murmúrio.


"Como se fosse uma recompensa por sua humildade e paciência, o Senhor concedeu-lhe um dom: consolação dos aflitos. Pessoas completamente estranhas e desconhecidas encontrando-se em aflição, desconsolo, depressão, desânimo e desespero começaram a visitá-la e conversar com ela. E todos saíram consolados, sentindo seus pesares iluminados, sua aflição pacificada, seus medos acalmados, sua depressão, desânimo e desespero afastados " (Orthodox Word,vol. 13, n°3).

"Assim Deus agiu. Como um Pai providencial e não como um seqüestrados, Ele primeiro nos envolveu em coisas pesarosas, dando-nos tribulações para que, sendo purificados e temperados por essas coisas, nós possamos, depois de mostrar paciência e aprendizado e rígida disciplina, herdar o Reino dos Céus" (São João Crisóstomo, Homilia 18, Das Estátuas).

VI. Oração de Nosso Santo Padre Ambrósio, Bispo de Milão

Santo Ambrósio atribuía essa oração ao Apóstolo Mateus, por ocasião de sua conversão.

Só a Ti eu sigo, Senhor Jesus, que cura minhas feridas. Pois o que poderá me separar do amor de Deus, que está em Ti? Será tribulação ou distração ou fome? Estou preso como que por pregos, e algemado pelas correntes da caridade. Remove de mim, ó Senhor Jesus, com Tua potente espada, a corrupção de meus pecados. Mantém-me preso às ataduras de Teu amor; corta fora o que é corrupto em mim. Vem rápido e dá um fim em minhas muitas, ocultas e secretas aflições. Abre a ferida para que o veneno maligno não se espalhe. Com Teu novo lavagem, limpa-me de tudo que está maculado. Ouvi-me, ó homens terrestres, que em nossos pecados criam pensamentos bêbados: eu encontrei um Médico. Ele habita no céu e distribui Suas curas na terra. Só Ele pode curar minhas dores, Ele que não tem nenhuma. Só Ele, que conhece o que está escondido, pode me livrar da aflição de meu coração e do medo de minha alma - Jesus Cristo. Cristo é graça, Cristo é vida, Cristo é Ressurreição! Amém.