Parte V: Assuntos Difíceis
Chamamos aqui de “assuntos difíceis” àqueles em que não basta apelarmos ao bom senso e às experiências comuns a todos nós. Elas exigem um tratamento filosófico mais refinado.
I – Infinitude
Leucipo e Demócrito propuseram, na Grécia Antiga, a teoria dos átomos. Segundo eles, tudo o que há é composto de minúsculas partículas de matéria, separadas por espaços totalmente desprovidos de matéria. A essas partículas eles chamavam átomos. Nada menor poderia haver no mundo pois, segundo eles, os átomos eram unidades indivisíveis de matéria e, além disso, infinitas em número.
Aristóteles apresentou duas sérias objeções a essa teoria atomista.
Em primeiro lugar, se um átomo não possui absolutamente nenhum espaço vazio em seu interior, isso significa que esse átomo é contínuo e, portanto, tem de ser divisível. Segundo Aristóteles, aquilo que é contínuo é, por definição, infinitamente divisível.
Em segundo lugar, Aristóteles sustentou que é impossível haver um número infinito de átomos no mundo. De fato, se houvesse um número infinito de átomos no mundo, eles jamais poderiam coexistir num mesmo instante de tempo pois, afinal, seriam infinitos em número.
Aristóteles entendia que há dois infinitos, ambos potenciais (em potência), jamais infinitos atuais (em ato). Um é o infinito em potencial da adição, o outro é o infinito em potencial da divisão.
Por exemplo, é possível somarmos um número atrás do outro, sem fim. Mas isso seria apenas possível, você não pode realmente (actualmente) fazer isso, pois fazê-lo exigiria uma quantidade infinita de tempo. Similarmente, você pode dividir algo contínuo sem parar. Mas, novamente, isso seria apenas possível.
Assim, Aristóteles conclui afirmando que não há coisas que existam em número infinito pois tais coisas não poderiam coexistir, isto é, existir ao mesmo tempo. Ou o número de coisas que coexistam é definido ou indefinido. Se for infinito, então é indefinido. Mas não há nada que seja ao mesmo tempo atual e indefinido. Portanto, não há infinitos em ato, seja um mundo infinito, seja um espaço infinito, seja um número infinito de átomos.
II – Eternidade
Aristóteles observa que o tempo pode ser infinito porque ele é composto de uma série de momentos que não coexistem. E ele também ensina que o tempo é ilimitado, sendo que o mundo não só não teve um começo como não terá um fim. Isto se verifica da seguinte maneira: o tempo nada mais é do que a medida do movimento, ou seja, assim como os corpos existem na dimensão espacial, os movimentos ocorrem na dimensão temporal. Como os movimentos nunca cessam, segue que o tempo também não cessará. O tempo é eterno porque o movimento é eterno.
Mas por que Aristóteles achava que o movimento é eterno? Afinal, poderíamos até concordar com ele em afirmar que o movimento não terá fim, mas por que haveríamos de dizer que o movimento jamais teve um começo?
A explicação encontra-se na noção de causa e efeito. O movimento daquilo que move foi causado por um outro corpo que, por sua vez, teve de se mover também, e assim sucessivamente. Pense numa bola de bilhar que foi atingida por outra bola. Essa outra bola, por sua vez, teve seu movimento causado pelo taco de bilhar que, por sua vez, teve seu movimento causado pelo braço do jogador, e assim sucessivamente. Não há um primeiro motor nas séries de movedores e coisas movidas. Se não há um primeiro motor, então não há um começo para os movimentos dos corpos do mundo e, portanto, o tempo não teve um começo. Aristóteles atribui o movimento constante das coisas terrestres ao movimento dos corpos celestes.
A esta noção de mundo sem começo e fim Aristóteles chamava de eternidade; todavia Aristóteles também usava esse termo para designar intemporalidade, como quando dizemos que Deus é eterno. Mas, para Aristóteles, a eternidade do mundo é uma coisa e a eternidade de Deus é outra.
III – A imaterialidade da mente
Vimos anteriormente que as coisas do mundo natural são compostas de matéria e forma. Lembre-se que forma não é figura ou formato; por exemplo, as cadeiras do mundo apresentam diversos formatos mas são todas elas cadeiras, ou seja, cada cadeira possui seu formato mas é a forma, não o formato, que faz de todas as cadeiras o mesmo tipo de coisa.
Observa-se então que todos as coisas materiais possuem um aspecto que não é material, ou seja, imaterial. Forma não é matéria. Matéria não é forma.
A forma – o aspecto imaterial – que existe na matéria é chamado de forma material. Mas será que a forma pode existir separadamente da matéria?
Aristóteles ensina que sim.
Quando, por exemplo, comemos uma maçã, nós separamos sua matéria de sua forma e substituímos a forma da maçã pela forma de nosso corpo. Neste caso, não há momento em que a maçã fica sem uma forma. Há apenas uma substituição. No entanto, ao entendermos coisas cognoscíveis, nós separamos a forma da matéria e assimilamos apenas a forma, mantendo-a separada da matéria. Apenas dessa maneira, como forma separada da matéria, somos capazes então de construir idéias a respeito das coisas a fim de entendê-las, como por exemplo, a idéia de maçã.
Fazemos isso porque entendemos as maçãs em geral, não em particular. Nossa idéia de maçã vale para todos os tipos de maçã abarcados por essa idéia, e não apenas esta ou aquela maçã.
Até aqui, entendemos que a mente trabalha com o aspecto imaterial, formal, das coisas. Mas podemos concluir que a própria mente é, em si, imaterial? Não somente podemos como devemos!
Se a mente não fosse imaterial então ela não poderia entender as coisas materiais separando suas formas de suas matérias. Para reter o aspecto imaterial das coisas, a própria mente tem de ser imaterial. Se a mente fosse material, as formas permaneceriam na matéria, e não poderíamos formar posteriormente idéias a partir delas.
Observe que quando vemos e percebemos as coisas, conhecemos esta e aquela coisa em particular. Ver e perceber são funções dos órgãos materiais de nossos corpos, ou seja, olhos e cérebro. Mas quando entendemos as coisas, conhecemos o tipo de coisa em geral que esta coisa individual é. Entender não é função de nenhum órgão material de nossos corpos; é função da mente, que é um elemento imaterial de nossa existência.
IV – Deus
Vimos que Aristóteles atribuía o constante movimento aos corpos celestes. Mas quem os mantêm em constante movimento? Qualquer que seja a resposta, não pode ser um outro corpo em movimento pois esse corpo também precisaria ter seu movimento explicado pelo efeito de um outro corpo, e assim sucessivamente.
Assim, deve haver um primeiro motor que não se move mas que mova o mundo de maneira atrativa, e não propulsiva. Diferentemente do taco de bilhar que faz mover a bola por causa eficiente, o primeiro motor deve mover o mundo por causa final.
Se este primeiro motor move o mundo sem se mover, significa que ele tem de ser imutável. E se ele tem de ser imutável, significa que ele tem de ser puramente imaterial, ou seja, pura forma, puro ato. E se ele tem de ser puro ato, significa que ele tem de ser perfeito.
Este ser perfeito Aristóteles chamou de Deus. Deus, ou o Primeiro Motor, serve apenas para explicar a eternidade do universo e seu movimento constante. Para Aristóteles, Deus não é o criador do mundo porque o tempo, sendo eterno, dispensa uma explicação para criação do mundo.
4 de agosto de 2005
Aristóteles - Parte IV
Parte IV: Homem Conhecedor
O Que Entra na Mentre e o Que Sai Dela
É hora de examinarmos a terceira dimensão do homem. Já estudamos o homem enquanto produtor e o homem enquanto agente.
Segundo Aristóteles, as palavras que utilizamos expressam nossas idéias. Mas de onde vêm nossas idéias? Elas são produto de nossas experiências. Por isso, concentremo-nos inicialmente em nossos sentidos. É lá que nascem nossas experiências.
Ocorre que as sensações que recebemos por meio de nossos órgãos dos sentidos é apenas matéria-prima passiva que utilizamos para formar nossas experiências sensoriais. Ao reunirmos nossas sensações numa percepção, então passamos a ser mais ativos que passivos.
Todavia, há mais do que percepções no mundo exterior. Nossas experiências envolvem também memória e imaginação. Mas quando você percebe um gato, por exemplo, não são somente sua imaginação e sua memória que estão envolvidas; seu entendimento também estará desempenhando papel perceptivo. Afinal, se você não entendesse, você jamais teria experiências perceptivas. Tais entendimentos são resultado de nossas mentes, que formam idéias de gatos, cães, de andar, de sentar etc. É importante observar que nossas idéias baseiam-se no mundo exterior, mas formadas pela própria mente na tentativa de entender o mundo. São pelas idéias que procuramos apreender a natureza de cães, gatos etc.
E como nossas mentes formam idéias? Captando as formas das coisas e separando-as da matéria dessas coisas. Veja que interessante: produzir coisas significa traduzirmos nossas idéias na matéria; produzir idéias significa extrair a forma da matéria. A idéia de uma maçã usa apenas a forma da maçã, não a matéria da maçã.
Porém, nossas idéias não se limitam a coisas que percebemos, lembramos ou imaginamos. Há uma infinidade de objetos do pensamento imperceptíveis; por exemplo: liberdade, justiça, virtude etc.
Note ainda que as sensações e idéias não são verdadeiras em si. Se digo “cão” a você, você não estará apto a responde “sim” ou “não”. Só quando digo “este cão é preto” é que você poderá dizem “sim” ou “não”, “verdadeiro” ou “falso”. É aí que chegamos ao nível da formação de opinião.
Então, Aristóteles identifica três níveis de pensamento que a mente opera para produzir pensamentos:
1) da matéria-prima sensorial, a mente forma idéias;
2) da idéia, a mente forma julgamentos (“sim”, “não” etc.);
3) quando uma declaração ou sentença é base para afirmarmos ou negarmos outra, chegamos ao nível do raciocínio, ou inferência (lógico, ilógico). Saímos do nível do julgamento (apenas “é”, “não é”, “sim”, “não” etc.) e começamos a fornecer razões.
Lógica
Falemos então sobre lógica. Sobre lógica, há dois assuntos de interesse: a lei da contradição e a teoria do silogismo.
A lei da contradição diz que não devemos afirmar e negar a mesma proposição. Ela é tão óbvia que Aristóteles a considerava auto-evidente, isto é, inegável. Eis três regras da lei da contradição:
1) Quando afirmamos duas coisas contraditórias, ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, nem ambas podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: todos os cisnes são brancos e alguns cisnes não são brancos.
2) Quando afirmamos duas coisas contrárias, ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas ambas podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: todos os cisnes são brancos e nenhum cisne é branco.
3) Quando afirmamos duas coisas subcontrárias, ambas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas ambas não podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: alguns cisnes são brancos e alguns cisnes não são brancos.
A importância destras três regras é imensa. Observá-las significa evitar que sejamos inconsistentes e, além disso, nos ajudam a detectar inconsistências alheias.
Estendamos um pouco mais nossos estudos em lógica. As proposições contém certos termos que nos permitem tirar conclusões diretas. Por exemplo, quando dizemos que uma moeda, numa disputa de cara-e-coroa, deu “cara”, já sabemos que o outro lado é “coroa”. Não é necessário verificarmos o outro lado da moeda para nos certificar disso. Aristóteles chamava isso de inferência imediata, ou seja, nenhuma etapa intermediária de raciocínio é necessária.
E como é fácil cometermos erros de inferência! Por exemplo, se dizemos que todos os cisnes são brancos, podemos inferir que alguns objetos brancos são cisnes, mas não podemos inferir que todos os objetos brancos são cisnes. Tal inferência incorreta Aristóteles chamava de conversão ilícita.
Há dois pares de palavras que ajudam a expressar a correção ou incorreção de uma inferência:
1) Se/Então: Se todos os cisnes são brancos, então alguns cisnes são brancos. Observe que pode ser falso o fato de todos os cisnes serem brancos mas, mesmo asssim, seria perfeita e corretamente lógico inferir que alguns cisnes são brancos se todos fossem brancos. O par se/então serve para verificar a correção ou incorreção lógica entre as duas sentenças e independe da veracidade delas em si.
2) Dado que/Portanto: Dado que todos os cisnes são brancos, portanto alguns cisnes são brancos. A diferença aqui é crucial. Quando digo “Se todos os cisnes são brancos...”, apenas disse se todos são, e não que todos são. Mas quando digo “Dado que todos os cisnes são brancos...”, eu disse que todos são.
Estas regras de inferência imediata ajudam-nos a entender as regras de raciocínio da teoria do silogismo de Aristóteles. Eis um silogismo típico:
Premissa maior: Todos os animais são mortais
Premissa menor: Todos os homens são animais
Conclusão: Todos os homens são mortais
Observe que o raciocínio silogístico é mais complexo que as inferências imediatas. Na premissa maior e na premissa menor há um meio-termo (no exemplo acima é a palavra “animais”) que as media. Esse meio-termo cumpriu sua função no raciocínio e pôde ser descartado na conclusão (observe que na conclusão do exemplo não aparece o meio-termo “animais”). É por causa do meio-termo que Aristóteles chama o silogismo de inferência mediata.
Similarmente à inferência imediata, o raciocínio silogístico também trabalha com os pares se/então e dado que/portanto. É como se as premissas maior e menor fossem o “se” e a conclusão o “então”. Temos o direito de afirmar a veracidade da conclusão se afirmarmos a veracidade das premissas. E temos o direito de negar a veracidade de uma ou ambas as premissas se negarmos a veracidade da conclusão.
Dizendo a Verdade e Pensando Nela
Você já deve ter percebido que a palavra “verdade” foi extensamente usada até aqui. O que é dizer a verdade? O que é dizer mentira? Ora, dizer “é” quando você acha que “não é” – ou dizer “não é” quando você acha que “é” – é dizer uma mentira. E dizer a verdade é o oposto disso, ou seja, dizer “é” quando realmente acho que “é” e dizer “não é” quando realmente acho que “não é”. Portanto, dizer a verdade é expressar-se em palavras que concordem ou se conformem àquilo que se pensa.
Bem sabemos que uma coisa é dizer a verdade, outra coisa é pensar a verdade. Podemos muito bem dizer o que realmente pensamos mas, mesmo assim, estarmos errados no que pensamos. Isso ocorre, por exemplo, quando alguém nos pergunta onde fica determinada avenida e damos as direções que realmente pensamos serem as corretas mas, mais tarde, verificamos que estávamos enganados. Então, nesse caso, dissemos a verdade mas pensamos uma mentira. Constatamos então que dizer a verdade é uma concordância entre o que dizemos e o que pensamos, enquanto pensar a verdade é uma concordância entre o conteúdo da mente e a realidade.
Mas será que tudo que sai da nossa boca é ou verdade ou mentira? Aristóteles ensina que não. Há certas expressões que não são nem verdade nem mentira. Perguntas não são nem verdade nem mentira. Pedidos não são nem verdade nem mentira. Ordens não são nem verdade nem mentira. Ou seja, apenas frases declarativas – que contenham as palavras “é” ou “não é” ou que possam ser refraseadas para as conter – são verdadeiras ou falsas.
Parece então que apenas sentenças descritivas podem ser verdadeiras ou falsas, enquanto sentenças prescritivas (que digam o que você deve ou não deve fazer) não poderiam ser classificadas como verdadeiras nem falsas. Mas Aristóteles nos ensina que não é assim!
Segundo Aristóteles, as sentenças descritivas são verdadeiras quando se conformam à realidade enquanto as sentenças prescritivas são verdadeiras quando se conforma ao desejo certo. Mas o que é o desejo certo? É aquele desejo realmente bom para os homens. E quail o desejo realmente bom para os homens? Qualquer desejo que satisfaça às necessidades humanas. Ora, trata-se de uma verdade auto-evidente que os homens devam desejar aquilo que é realmente bom para eles, da mesma forma que o todo é maior do que as partes é uma verdade auto-evidente.
Ocorre que há poucas verdades auto-evidentes que podemos estabelecer. Assim, se a verdade não for auto-evidente numa dada questão, sua veracidade poderá ser estabelecida por meio de argumentos ou raciocínio. Por exemplo: o Estado de São Paulo é menor do que o Brasil. Não é difícil demonstrar, tendo em mente a premissa de que o todo é maior do que as partes, a veracidade dessa declaração.
Mas, assim como há poucas verdades auto-evidentes disponíveis, há poucas questões que se nos apresentam cuja veracidade seja demonstrável por meio de argumentos e raciocínios. Na maioria dos casos, ficamos na dúvida se uma sentença é verdadeira ou falsa. Esses casos, se solúveis, devem ser resolvidos com o auxílio de nossas experiências. É fato também que nem sempre nossos sentidos são confiáveis. Então, podemos ainda apelar para o testemunho de outras pessoas a fim de verificar se nossas observações estão corretas.
Vejamos um exemplo. Um carro acaba de bater num poste. Eu, testemunha ocular, digo que o carro estava muito rápido. Mas estarei certo disso? Bem, há outras testemunhas no local que, como eu, também dizem que o carro estava muito rápido. Quanto mais testemunhas estejam à disposição para confirmar minha declaração, tanto mais provavelmente verdadeira ela será. Mas você pode estar se perguntando: uma declaração ser provavelmente verdadeira não é diferente de ser certamente verdadeira? Devemos realmente estabelecer uma verdade em casos assim? Não estaríamos sendo presunçosos ao considerarmos algo provavelmente verdadeira como certamente verdadeiro?
Esse é um engano relativamente comum. É claro que há uma verdade ou falsidade a ser extraída da declaração “o carro estava muito rápido”. Afinal, ou o carro estava muito rápido ou não estava. Se eu digo que provavelmente o carro estava muito rápido, isso quer dizer que estou estimando meu grau de segurança a respeito do que aconteceu. Graus de probabilidade não são graus de verdade. Lembre-se: ou o carro estava muito rápido ou não estava. Uma verdade que afirmamos com certeza, como a de que o todo é maior do que as partes, não é “mais verdadeira” do que quando afirmamos que o carro provavelmente estava muito rápido. É claro que, devido ao grau de segurança a respeito do que declaramos como verdadeiro ou falso, podemos questionar nossas declarações, mas não podemos questionar que há uma verdade a ser extraída do fato observável.
Além da Dúvida Razoável
Aristóteles notava que há dois níveis de declarações. Um nível é a sentença que tem status de conhecimento. O outro é o nível cuja sentença tem status de opinião. As opiniões, na medida que tenhamos evidências à disposição, podem se aproximar ou se afastar do status de conhecimento. O conhecimento, diferentemente, consiste em verdades necessárias. Por exemplo, se há um todo, esse todo deve necessariamente ser maior do que as partes.
Como você percebeu no exemplo, as verdades auto-evidentes são conhecimento, assim como as conclusões que podemos demonstrar a partir das verdades auto-evidentes também são conhecimento. Aristóteles considerava a geometria um excelente exemplo de conhecimento de alta qualidade.
Se sustento uma opinião só porque alguém me disse que ela era verdadeira, então trata-se de mera opinião da minha parte; ou seja, as meras opiniões representam wishful thinking (pensamento desejoso) nossos, às quais estamos emocionalmente apegados. Similarmente, nossas preferências alimentares também são meras opiniões, na medida em que não há argumento racional que as sustente. No entanto, quando temos evidências à nossa disposição, as meras opiniões sobem de status e gradualmente aproximam-se do conhecimento. Por exemplo, eu e você podemos discordar a respeito do futuro da internet. Você pode achar que ela crescerá e eu posso achar que ela entrará em colapso ou cederá a vez a outra tecnologia. Para sustentar nossas opiniões, levamos em conta evidências, estatísticas, estudos etc. Observe que as declarações que eu e você damos não fazem mais parte do status de meras opiniões, pois estamos embasando-as em algo mais do que preferências pessoais ou apegos emocionais. E Aristóteles lembrava ainda que caso tenhamos as grandes autoridades de um dado assunto do nosso lado, o status de nossas declarações subiria ainda mais.
Quando as opiniões são baseadas em evidências científicas e raciocínios científicos, então aproximam-se cada vez mais do conhecimento. Mas nenhuma conclusão científica alcançará o status de verdade última e final, pois sempre será possível corrigi-la ou rejeita-la por meio de novas investigações e raciocínios mais aprimorados; em outras palavras, nenhuma conclusão científica é, em si, uma verdade necessária. Tal conclusão será, na melhor das hipóteses, um conhecimento bem estabelecido por enquanto.
Além das conclusões científicas, as conclusões filosóficas também podem atingir o status de conhecimento. Mas qual a diferença entre uma conclusão científica e uma conclusão filosófica? Simples. As conclusões científicas baseiam-se em pesquisas e investigações, sejam elas conduzidas em laboratórios ou não. As conclusões filosóficas baseiam-se no pensamento a partir das experiências que todos nós temos, sem a necessidade de pesquisas. A filosofia não pesquisa e não desenvolve experimentos. E porque as reflexões filosóficas baseiam-se em experiências comuns, e não em experiências especiais, elas não se deixam afetar por pesquisas científicas posteriores. É por isso, por exemplo, que o conhecimento filosófico alcançado por Aristóteles continua válido, mesmo séculos e séculos depois de estabelecido.
Não podemos nos esquecer de um quinto e último tipo de conhecimento bem estabelecido: as investigações históricas, que chegam a conclusões a partir de fatos e dados registrados.
Vale à pena agora resumirmos os cinco tipos de opiniões, para termos uma visão de conjunto. Observe que apenas ao tipo (1) podemos atribuir status de conhecimento propriamente dito. Os outros quatro tipos permanecem com status de opiniões, não importando quão bem-estabelecidas; na melhor das hipóteses, podemos chamá-las de conhecimento por enquanto.
(1) verdades auto-evidentes;
(2) pensamentos matemático-geométricos;
(3) pesquisas científicas;
(4) reflexões filosóficas;
(5) pesquisas históricas.
O Que Entra na Mentre e o Que Sai Dela
É hora de examinarmos a terceira dimensão do homem. Já estudamos o homem enquanto produtor e o homem enquanto agente.
Segundo Aristóteles, as palavras que utilizamos expressam nossas idéias. Mas de onde vêm nossas idéias? Elas são produto de nossas experiências. Por isso, concentremo-nos inicialmente em nossos sentidos. É lá que nascem nossas experiências.
Ocorre que as sensações que recebemos por meio de nossos órgãos dos sentidos é apenas matéria-prima passiva que utilizamos para formar nossas experiências sensoriais. Ao reunirmos nossas sensações numa percepção, então passamos a ser mais ativos que passivos.
Todavia, há mais do que percepções no mundo exterior. Nossas experiências envolvem também memória e imaginação. Mas quando você percebe um gato, por exemplo, não são somente sua imaginação e sua memória que estão envolvidas; seu entendimento também estará desempenhando papel perceptivo. Afinal, se você não entendesse, você jamais teria experiências perceptivas. Tais entendimentos são resultado de nossas mentes, que formam idéias de gatos, cães, de andar, de sentar etc. É importante observar que nossas idéias baseiam-se no mundo exterior, mas formadas pela própria mente na tentativa de entender o mundo. São pelas idéias que procuramos apreender a natureza de cães, gatos etc.
E como nossas mentes formam idéias? Captando as formas das coisas e separando-as da matéria dessas coisas. Veja que interessante: produzir coisas significa traduzirmos nossas idéias na matéria; produzir idéias significa extrair a forma da matéria. A idéia de uma maçã usa apenas a forma da maçã, não a matéria da maçã.
Porém, nossas idéias não se limitam a coisas que percebemos, lembramos ou imaginamos. Há uma infinidade de objetos do pensamento imperceptíveis; por exemplo: liberdade, justiça, virtude etc.
Note ainda que as sensações e idéias não são verdadeiras em si. Se digo “cão” a você, você não estará apto a responde “sim” ou “não”. Só quando digo “este cão é preto” é que você poderá dizem “sim” ou “não”, “verdadeiro” ou “falso”. É aí que chegamos ao nível da formação de opinião.
Então, Aristóteles identifica três níveis de pensamento que a mente opera para produzir pensamentos:
1) da matéria-prima sensorial, a mente forma idéias;
2) da idéia, a mente forma julgamentos (“sim”, “não” etc.);
3) quando uma declaração ou sentença é base para afirmarmos ou negarmos outra, chegamos ao nível do raciocínio, ou inferência (lógico, ilógico). Saímos do nível do julgamento (apenas “é”, “não é”, “sim”, “não” etc.) e começamos a fornecer razões.
Lógica
Falemos então sobre lógica. Sobre lógica, há dois assuntos de interesse: a lei da contradição e a teoria do silogismo.
A lei da contradição diz que não devemos afirmar e negar a mesma proposição. Ela é tão óbvia que Aristóteles a considerava auto-evidente, isto é, inegável. Eis três regras da lei da contradição:
1) Quando afirmamos duas coisas contraditórias, ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, nem ambas podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: todos os cisnes são brancos e alguns cisnes não são brancos.
2) Quando afirmamos duas coisas contrárias, ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas ambas podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: todos os cisnes são brancos e nenhum cisne é branco.
3) Quando afirmamos duas coisas subcontrárias, ambas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas ambas não podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: alguns cisnes são brancos e alguns cisnes não são brancos.
A importância destras três regras é imensa. Observá-las significa evitar que sejamos inconsistentes e, além disso, nos ajudam a detectar inconsistências alheias.
Estendamos um pouco mais nossos estudos em lógica. As proposições contém certos termos que nos permitem tirar conclusões diretas. Por exemplo, quando dizemos que uma moeda, numa disputa de cara-e-coroa, deu “cara”, já sabemos que o outro lado é “coroa”. Não é necessário verificarmos o outro lado da moeda para nos certificar disso. Aristóteles chamava isso de inferência imediata, ou seja, nenhuma etapa intermediária de raciocínio é necessária.
E como é fácil cometermos erros de inferência! Por exemplo, se dizemos que todos os cisnes são brancos, podemos inferir que alguns objetos brancos são cisnes, mas não podemos inferir que todos os objetos brancos são cisnes. Tal inferência incorreta Aristóteles chamava de conversão ilícita.
Há dois pares de palavras que ajudam a expressar a correção ou incorreção de uma inferência:
1) Se/Então: Se todos os cisnes são brancos, então alguns cisnes são brancos. Observe que pode ser falso o fato de todos os cisnes serem brancos mas, mesmo asssim, seria perfeita e corretamente lógico inferir que alguns cisnes são brancos se todos fossem brancos. O par se/então serve para verificar a correção ou incorreção lógica entre as duas sentenças e independe da veracidade delas em si.
2) Dado que/Portanto: Dado que todos os cisnes são brancos, portanto alguns cisnes são brancos. A diferença aqui é crucial. Quando digo “Se todos os cisnes são brancos...”, apenas disse se todos são, e não que todos são. Mas quando digo “Dado que todos os cisnes são brancos...”, eu disse que todos são.
Estas regras de inferência imediata ajudam-nos a entender as regras de raciocínio da teoria do silogismo de Aristóteles. Eis um silogismo típico:
Premissa maior: Todos os animais são mortais
Premissa menor: Todos os homens são animais
Conclusão: Todos os homens são mortais
Observe que o raciocínio silogístico é mais complexo que as inferências imediatas. Na premissa maior e na premissa menor há um meio-termo (no exemplo acima é a palavra “animais”) que as media. Esse meio-termo cumpriu sua função no raciocínio e pôde ser descartado na conclusão (observe que na conclusão do exemplo não aparece o meio-termo “animais”). É por causa do meio-termo que Aristóteles chama o silogismo de inferência mediata.
Similarmente à inferência imediata, o raciocínio silogístico também trabalha com os pares se/então e dado que/portanto. É como se as premissas maior e menor fossem o “se” e a conclusão o “então”. Temos o direito de afirmar a veracidade da conclusão se afirmarmos a veracidade das premissas. E temos o direito de negar a veracidade de uma ou ambas as premissas se negarmos a veracidade da conclusão.
Dizendo a Verdade e Pensando Nela
Você já deve ter percebido que a palavra “verdade” foi extensamente usada até aqui. O que é dizer a verdade? O que é dizer mentira? Ora, dizer “é” quando você acha que “não é” – ou dizer “não é” quando você acha que “é” – é dizer uma mentira. E dizer a verdade é o oposto disso, ou seja, dizer “é” quando realmente acho que “é” e dizer “não é” quando realmente acho que “não é”. Portanto, dizer a verdade é expressar-se em palavras que concordem ou se conformem àquilo que se pensa.
Bem sabemos que uma coisa é dizer a verdade, outra coisa é pensar a verdade. Podemos muito bem dizer o que realmente pensamos mas, mesmo assim, estarmos errados no que pensamos. Isso ocorre, por exemplo, quando alguém nos pergunta onde fica determinada avenida e damos as direções que realmente pensamos serem as corretas mas, mais tarde, verificamos que estávamos enganados. Então, nesse caso, dissemos a verdade mas pensamos uma mentira. Constatamos então que dizer a verdade é uma concordância entre o que dizemos e o que pensamos, enquanto pensar a verdade é uma concordância entre o conteúdo da mente e a realidade.
Mas será que tudo que sai da nossa boca é ou verdade ou mentira? Aristóteles ensina que não. Há certas expressões que não são nem verdade nem mentira. Perguntas não são nem verdade nem mentira. Pedidos não são nem verdade nem mentira. Ordens não são nem verdade nem mentira. Ou seja, apenas frases declarativas – que contenham as palavras “é” ou “não é” ou que possam ser refraseadas para as conter – são verdadeiras ou falsas.
Parece então que apenas sentenças descritivas podem ser verdadeiras ou falsas, enquanto sentenças prescritivas (que digam o que você deve ou não deve fazer) não poderiam ser classificadas como verdadeiras nem falsas. Mas Aristóteles nos ensina que não é assim!
Segundo Aristóteles, as sentenças descritivas são verdadeiras quando se conformam à realidade enquanto as sentenças prescritivas são verdadeiras quando se conforma ao desejo certo. Mas o que é o desejo certo? É aquele desejo realmente bom para os homens. E quail o desejo realmente bom para os homens? Qualquer desejo que satisfaça às necessidades humanas. Ora, trata-se de uma verdade auto-evidente que os homens devam desejar aquilo que é realmente bom para eles, da mesma forma que o todo é maior do que as partes é uma verdade auto-evidente.
Ocorre que há poucas verdades auto-evidentes que podemos estabelecer. Assim, se a verdade não for auto-evidente numa dada questão, sua veracidade poderá ser estabelecida por meio de argumentos ou raciocínio. Por exemplo: o Estado de São Paulo é menor do que o Brasil. Não é difícil demonstrar, tendo em mente a premissa de que o todo é maior do que as partes, a veracidade dessa declaração.
Mas, assim como há poucas verdades auto-evidentes disponíveis, há poucas questões que se nos apresentam cuja veracidade seja demonstrável por meio de argumentos e raciocínios. Na maioria dos casos, ficamos na dúvida se uma sentença é verdadeira ou falsa. Esses casos, se solúveis, devem ser resolvidos com o auxílio de nossas experiências. É fato também que nem sempre nossos sentidos são confiáveis. Então, podemos ainda apelar para o testemunho de outras pessoas a fim de verificar se nossas observações estão corretas.
Vejamos um exemplo. Um carro acaba de bater num poste. Eu, testemunha ocular, digo que o carro estava muito rápido. Mas estarei certo disso? Bem, há outras testemunhas no local que, como eu, também dizem que o carro estava muito rápido. Quanto mais testemunhas estejam à disposição para confirmar minha declaração, tanto mais provavelmente verdadeira ela será. Mas você pode estar se perguntando: uma declaração ser provavelmente verdadeira não é diferente de ser certamente verdadeira? Devemos realmente estabelecer uma verdade em casos assim? Não estaríamos sendo presunçosos ao considerarmos algo provavelmente verdadeira como certamente verdadeiro?
Esse é um engano relativamente comum. É claro que há uma verdade ou falsidade a ser extraída da declaração “o carro estava muito rápido”. Afinal, ou o carro estava muito rápido ou não estava. Se eu digo que provavelmente o carro estava muito rápido, isso quer dizer que estou estimando meu grau de segurança a respeito do que aconteceu. Graus de probabilidade não são graus de verdade. Lembre-se: ou o carro estava muito rápido ou não estava. Uma verdade que afirmamos com certeza, como a de que o todo é maior do que as partes, não é “mais verdadeira” do que quando afirmamos que o carro provavelmente estava muito rápido. É claro que, devido ao grau de segurança a respeito do que declaramos como verdadeiro ou falso, podemos questionar nossas declarações, mas não podemos questionar que há uma verdade a ser extraída do fato observável.
Além da Dúvida Razoável
Aristóteles notava que há dois níveis de declarações. Um nível é a sentença que tem status de conhecimento. O outro é o nível cuja sentença tem status de opinião. As opiniões, na medida que tenhamos evidências à disposição, podem se aproximar ou se afastar do status de conhecimento. O conhecimento, diferentemente, consiste em verdades necessárias. Por exemplo, se há um todo, esse todo deve necessariamente ser maior do que as partes.
Como você percebeu no exemplo, as verdades auto-evidentes são conhecimento, assim como as conclusões que podemos demonstrar a partir das verdades auto-evidentes também são conhecimento. Aristóteles considerava a geometria um excelente exemplo de conhecimento de alta qualidade.
Se sustento uma opinião só porque alguém me disse que ela era verdadeira, então trata-se de mera opinião da minha parte; ou seja, as meras opiniões representam wishful thinking (pensamento desejoso) nossos, às quais estamos emocionalmente apegados. Similarmente, nossas preferências alimentares também são meras opiniões, na medida em que não há argumento racional que as sustente. No entanto, quando temos evidências à nossa disposição, as meras opiniões sobem de status e gradualmente aproximam-se do conhecimento. Por exemplo, eu e você podemos discordar a respeito do futuro da internet. Você pode achar que ela crescerá e eu posso achar que ela entrará em colapso ou cederá a vez a outra tecnologia. Para sustentar nossas opiniões, levamos em conta evidências, estatísticas, estudos etc. Observe que as declarações que eu e você damos não fazem mais parte do status de meras opiniões, pois estamos embasando-as em algo mais do que preferências pessoais ou apegos emocionais. E Aristóteles lembrava ainda que caso tenhamos as grandes autoridades de um dado assunto do nosso lado, o status de nossas declarações subiria ainda mais.
Quando as opiniões são baseadas em evidências científicas e raciocínios científicos, então aproximam-se cada vez mais do conhecimento. Mas nenhuma conclusão científica alcançará o status de verdade última e final, pois sempre será possível corrigi-la ou rejeita-la por meio de novas investigações e raciocínios mais aprimorados; em outras palavras, nenhuma conclusão científica é, em si, uma verdade necessária. Tal conclusão será, na melhor das hipóteses, um conhecimento bem estabelecido por enquanto.
Além das conclusões científicas, as conclusões filosóficas também podem atingir o status de conhecimento. Mas qual a diferença entre uma conclusão científica e uma conclusão filosófica? Simples. As conclusões científicas baseiam-se em pesquisas e investigações, sejam elas conduzidas em laboratórios ou não. As conclusões filosóficas baseiam-se no pensamento a partir das experiências que todos nós temos, sem a necessidade de pesquisas. A filosofia não pesquisa e não desenvolve experimentos. E porque as reflexões filosóficas baseiam-se em experiências comuns, e não em experiências especiais, elas não se deixam afetar por pesquisas científicas posteriores. É por isso, por exemplo, que o conhecimento filosófico alcançado por Aristóteles continua válido, mesmo séculos e séculos depois de estabelecido.
Não podemos nos esquecer de um quinto e último tipo de conhecimento bem estabelecido: as investigações históricas, que chegam a conclusões a partir de fatos e dados registrados.
Vale à pena agora resumirmos os cinco tipos de opiniões, para termos uma visão de conjunto. Observe que apenas ao tipo (1) podemos atribuir status de conhecimento propriamente dito. Os outros quatro tipos permanecem com status de opiniões, não importando quão bem-estabelecidas; na melhor das hipóteses, podemos chamá-las de conhecimento por enquanto.
(1) verdades auto-evidentes;
(2) pensamentos matemático-geométricos;
(3) pesquisas científicas;
(4) reflexões filosóficas;
(5) pesquisas históricas.
Aristóteles - Parte III
Parte III: Homem Agente
Meios e Fins
Suponha que você tenha R$ 1.000,00 sobrando na sua conta corrente. O que fazer com eles? Talvez você precise consertar os armários da cozinha, e o dinheiro viria bem a calhar. Talvez você prefira fazer uma viagem ou matricular-se num curso de inglês. Ou ainda guardar o dinheiro para usá-lo numa emergência médica.
Como escolher a melhor opção? Qual critério ou critérios devemos utilizar em nossas escolhas?
Pensamentos desse tipo é o que chamamos de pensamento prático. Conforme vimos na parte anterior, o pensamento produtivo versa sobre coisas a serem produzidas. O pensamento prático, por outro lado, versa sobre nossas ações. Para produzirmos algo, vimos que são necessários dois fatores: idéias produtivas e know-how. No nosso agir, há também dois fatores: uma idéia da meta a ser alcançada e idéias sobre maneiras de alcançá-la. Esta é uma outra maneira de dizer que, no pensamento prático, temos um fim a ser alcançado e os respectivos meios que podemos empregar para alcançar tal fim.
Será que um meio é bom quando o fim a que se destina também é bom? Os meios são bons na medida em que nos ajudam a alcançar nossa meta, mas podem ter suas conseqüências negativas. Por exemplo, roubar é um meio para obter dinheiro para uma viagem, mas há conseqüências negativas no roubo que gostaríamos de evitar. Perceba que o meio que empregamos para obter dinheiro para a viagem acabou nos levando a um outro fim, indesejado: a cadeia.
Observe também que o roubo, além de meio, foi também um fim usado para outro fim, que é obter dinheiro para a viagem. Assim, fica claro que meios podem ser fins que temos de alcançar para alcançarmos outros fins e, similarmente, fins podem ser meios que temos de alcançar para outros fins.
Essa observação é interessante porque levanta dúvidas importantes (1) Será que há meios que são apenas meios, e nunca fins? e (2) Será que há fins que são apenas fins, e nunca meios? Outra maneira de formular as mesmas perguntas é (1) Há coisas que desejamos em prol de outras coisas e nunca em prol de si mesmas? e (2) Há coisas que desejamos em prol de si mesmas e nunca em prol de outras coisas?
Para responder a essas perguntas, vale à pena refletirmos um pouco sobre meios e fins. Ora, se todo fim fosse um meio para outro fim e este outro fim fosse um meio para ainda outro fim, indefinidamente, então o pensamento prático seria impossível! E se um meio for em si um fim que necessite de outro meio para alcançá-lo, então igualmente jamais poderíamos iniciar qualquer ação.
Portanto, deve haver fins que não são meios para outros fins. E deve haver meios que são puramente meios, não sendo fins que necessitem de outros meios para alcançá-los.
Viver e Viver Bem
E qual seria este fim que não é meio para outro fim? Em outras palavras, o que é um fim em si mesmo – um fim último – que não serve de meio para mais nada? Sócrates dizia que uma vida não examinada não vale à pena ser vivida. Aristóteles foi mais longe, dizendo que uma vida não planejada não vale à pena ser examinada, pois uma vida não planejada é aquela da qual não sabemos o que estamos tentando fazer, aonde pretendemos chegar nem o porquê. É uma confusão, uma bagunça.
Planos errados há muitos, mas somente um plano pode ser o plano certo. Se você adotar um dos planos errados então você acabará não tendo uma boa vida. Para ter uma boa vida, devemos vivê-la de acordo com o plano certo.
Não deixa de ser chocante falarmos de “plano certo”. Mas qual é o plano certo? O que faz desse plano ser o certo e todos os outros serem errados? O plano certo é aquele que almeja o fim último certo. E qual é este fim que todos buscamos, que torna o plano certo para todos nós? O fim certo que todos devemos buscar é uma boa vida. Perceba que viver bem é um fim em si mesmo, ou seja, viver bem não é um meio para outro fim.
A palavra que Aristóteles usa para viver bem é normalmente traduzida como felicidade. Felicidade é aquilo que todos buscamos. Ninguém, se perguntado por quê quer a felicidade, pode dar uma razão. Dar uma razão para querer a felicidade seria tratar a felicidade como meio para um outro fim. Mas não há esse outro fim. Não há nada além da felicidade.
Bom, Melhor, O Melhor
Esta descoberta não deixa de ser intrigante. Ora, há no mundo alguns bilhões de homens e mulheres, então como podemos dizer que há um e mesmo plano certo para viver bem e alcançar a felicidade para todas essas pessoas? É verdade que cada homem é um ser individual, com vida individual e experiências individuais. Mas também é verdade que todos os homens, enquanto membros da mesma espécie humana, participam de uma humanidade comum; há traços e atributos que são comuns a todos os homens.
As diferenças entre os homens são diferenças em grau. Por exemplo, uns enxergam melhor que outros, uns alimentam-se mais que outros, uns raciocinam melhor que outros. Estes exemplos servem para nos ajudar a constatar o fato que os homens possuem desejos que não são adquiridos ao longo da vida, mas que nascem com eles. Enxergar, alimentar-se e raciocinar, por exemplo.
Quando dizemos que precisamos de comida, dizemos que temos um desejo de comida. Quando dizemos que queremos um novo automóvel, também dizemos que temos um desejo de um novo automóvel. Essas duas palavras – “precisar” e “querer” – indicam desejos , mas não desejos do mesmo tipo.
Necessidades são desejos inatos – isto é, desejos que pertencem à nossa natureza humana pois são capacidades ou tendências comuns a todos nós.
Em um de seus mais importantes tratados, Aristóteles diz que o homem por natureza deseja conhecer. Em outras palavras, ele quer dizer que o desejo de conhecimento do homem é tão natural quanto o desejo de comida, com a diferença que a fome nos alerta quanto à falta de comida, enquanto que não há um mecanismo semelhante que nos alerte quanto à falta de conhecimento. E este fato não deve nos levar ao erro de achar que, como o desejo de conhecer não se manifesta, logo ele não existe.
Note que nossas necessidades (“precisar”) nunca estão erradas ou mal orientadas, mas nossas vontades (“querer”) frequentemente estão. Você não consegue ter uma necessidade errada.
Que fique clara, portanto, a distinção que Aristóteles faz entre desejos naturais (“precisar”) e desejos adquiridos (“querer”). E Aristóteles diz que o plano certo para alcançarmos a felicidade (boa vida) é um plano que contemple buscarmos e adquirirmos tudo aquilo que seja realmente bom possuirmos, ou seja, tudo aquilo que precisamos não apenas para viver mas para viver bem.
Dado que os desejos naturais são os mesmos em todos os homens, eis por que o plano certo para a felicidade é o mesmo para todos os homens. Todavia, sabemos que quando tais desejos naturais, ou necessidades, são minimamente satisfeitas, isso não basta para dizermos que “vivemos bem.”
Um plano é melhor que o outro na medida em que guia o indivíduo para uma realização mais completa de seus talentos e capacidades e para uma satisfação mais completa de suas necessidades. E o melhor plano de todos – o que temos de adotar – é aquele que almeja todos os bens reais na medida certa e na ordem certa e, além disso, que nos permita buscar as coisas que queremos mas não precisamos, contanto que obtê-las não signifique interferir na busca de nossas necessidades ou na realização de nossos talentos e capacidades.
Como Buscar a Felicidade
Afinal, quais os reais bens que todos devemos buscar? Se produzir bens é o fim, então os meios para atingi-lo são as idéias produtivas e o know-how, conforme vimos anteriormente. Mas no caso da felicidade, não há este se. Todos temos de buscar a felicidade, não conseguimos escapar disso. Mas como fazê-lo, afinal?
Aristóteles nos oferece duas respostas para essa pergunta. A primeira resposta consiste em enumerar os reais bens que todos necessitamos. A segunda resposta consiste numa prescrição para obtermos todos os bens reais que necessitamos ao longo da vida. A primeira é mais fácil de responder do que a segunda.
Primeira resposta. Na condição de animais, temos corpos que necessitam de certos cuidados. Como animais humanos, temos mentes que precisam ser exercitadas de dada maneira. Alguns dos bens reais que precisamos Aristóteles chama de bens corporais, tais como saúde, vitalidade e vigor. E dado que nossos sentidos nos permitem experimentar prazeres e dores corporais, Aristóteles também inclui tais prazeres dentre os bens reais. E para promover nossa saúde corporal, vitalidade e prazer, necessitamos de comida, bebida, habitação, vestuário e sono. Aristóteles agrega todas essas coisas em um termo: bens externos ou riqueza. Há ainda um terceiro tipo de bens que Aristóteles chama de bens da alma, que poderíamos também chamá-lo de bens psicológicos. O mais óbvio desses bens da alma são os bens da mente, tais como conhecimento, know-how e habilidades. Dentre as habilidades que todos precisamos, destaca-se a habilidade de pensar. Precisamos dela não somente fazer coisas bem feitas, mas também para agirmos bem e vivermos bem. Menos óbvio talvez sejam os bens da alma que necessitamos como animais sociais. Nós naturalmente desejamos amar outros seres humanos como desejamos ser amados por eles. Uma vida desprovida de amor – uma vida sem amigos – é uma vida desprovida de um bem altamente necessário.
Segunda resposta. Acima e além de todos os bens reais que mencionei acima, há mais uma classe de bens que necessitamos – bons hábitos; mais especificamente, bons hábitos de escolha. Por exemplo, possuir habilidade para jogar tênis é um bom hábito corporal, e possuir habilidade para resolver problemas matemáticos com facilidade é um bom hábito da mente; mas em contraste a esses hábitos, há aqueles que nos permitem tomar certas decisões com regularidade, com facilidade, sem termos de percorrer todo o processo de ponderação e reflexão novamente para só então escolhermos o melhor curso de ação. Aos bons hábitos Aristóteles chama de virtudes. Os bons hábitos relacionados a dons e habilidades chamamos de virtudes intelectuais. Os bons hábitos relacionados a comportamentos e caráter chamamos de virtudes morais. Ambos tipos de de virtudes são bens reais que necessitamos para uma boa vida. Mas as virtudes morais desempenham um papel especial em nossa busca da felicidade. Tão especial que Aristóteles nos diz que uma boa vida é aquela vivida por meio de escolhas ou decisões moralmente virtuosas.
Bons Hábitos e Boa Sorte
As escolhas e decisões que tomamos e que não nos deixam com remorsos são aquelas que contribuem para a busca da felicidade pois colocam os bens reais na ordem certa, limitando a quantia desses bens quando for necessário e pondo de lado as coisas que você quer em prol daquilo que você precisa.
Virtude moral é o hábito de tomar decisões certas. E o que devemos fazer para formamos esses hábitos? Por exemplo, se você quiser criar o hábito de chegar pontualmente em seus compromissos, terá de tentar ser pontual repetidamente, reiteradamente. Gradualmente, o hábito de ser pontual será formado. Uma vez formado, você terá disposição firme e resolvida de chegar na hora prometida. Quando mais forte o hábito, mais fácil será agir dessa maneira e mais difícil será quebrar o hábito, ou seja, agir de maneira contrária ao hábito. Você sentirá prazer ao fazer aquilo que está habituado, e não fazê-lo ou fazer o contrário do hábito será doloroso. E, observe, isso vale tanto para bons hábitos quanto para maus hábitos.
As virtudes morais, ou seja, os bons hábitos, são hábitos de tomar decisões certas entre bens reais e aparentes. Maus hábitos, que Aristóteles chamava de vícios, são hábitos de tomar decisões erradas. A pessoa virtuosa é aquela que toma decisões certas regularmente, embora não necessariamente sempre. Eis por que Aristóteles considera a virtude moral o meio principal para se alcançar a felicidade e a mais importante de todas as coisas que devemos possuir. Observe também que a virtude moral é um bem ilimitado, ou seja, não há como você ter virtude moral em excesso.
Temperança. Aristóteles ensina que uma das expressões da virtude moral é a temperança. A temperança consiste em habitualmente resistir a se entregar aos prazeres de todo tipo ou resistir às tentações de obter mais do que seria bom para nós em termos de bens limitados, como a riqueza por exemplo. Ter temperança significa resistir àquilo que parece bom a curto prazo em prol daquilo que realmente é bom a longo prazo.
Coragem. Outra expressão da virtude moral é a coragem. É similar à temperança, mas com uma diferença fundamental. Ter coragem significa ter disposição habitual em esforçar-se para fazer aquilo que temos de fazer em prol da boa vida. Estudar, aprender a tocar um instrumento musical, escrever bem ou pensar bem são atividades que envolvem práticas frequentemente maçantes, fatigantes. Evitar fazê-las em prol de um prazer momentâneo e fortuito, e fazer disso um hábito, é um vício que Aristóteles chama de covardia.
Temperança e coragem são semelhantes em um aspecto importante. Ambos são hábitos de escolher entre as coisas que parecem ser boas e as coisas que realmente são boas. Aristóteles também percebeu que é difícil para os jovens fixar o olhar em bens futuros e remotos em detrimento dos prazeres e dores presentes e imediatas.
E Aristóteles também nos alerta que possuir bons hábitos de escolha é requisito mas não é uma garantia. Mesmo de posse de todas as virtudes morais necessárias para uma boa vida, podemos falhar assim mesmo. Por que? Porque não estamos aptos a controlar as condições sob as quais nascemos e somos criados. Muito do que acontece conosco acontece por acaso ao invés de fruto de nossas escolhas. Boa sorte é tão necessário quanto bons hábitos.
Aristóteles resume tudo isso afirmando que obter sucesso em viver uma boa vida depende de duas coisas: possuir virtudes morais e ser abençoado com boa sorte (boa fortuna). Enquanto as virtudes morais impedem que caminhemos na direção errada e escolhamos coisas que não são realmente boas para nós, a boa fortuna nos supre de bens reais que não estariam de outra forma disponíveis a nós.
Dentre os bens que provêm da boa fortuna estão as coisas que dependem do ambiente físico e da sociedade que nascemos, crescemos e vivemos. Aristóteles não nos deixa esquecer que somos animais sociais além de organismos físicos. Ter uma boa família e viver numa boa sociedade são aspectos tão importantes quanto viver em meio a boas condições climáticas e ambientais (ter ar, água e outros recursos físicos disponíveis e de boa qualidade).
Justiça. Dado que não conseguimos viver em completa solidão, somos forçados a pensar no que temos de fazer para viver bem com as outras pessoas. Eis por que, além de coragem e temperança, Aristóteles considera a justiça como uma expressão da virtude moral. A justiça se preocupa com o bem dos outros, não apenas de nossos amigos, familiares e daqueles que amamos, mas de todo mundo.
É interessante notar que as três virtudes mencionadas são inseparáveis. As pessoas que não possuem temperança e coragem prejudicam a si mesmas ao habitualmente fazerem escolhas erradas. E pessoas que habitualmente fazem escolhas erradas também serão injustas e prejudicarão outras pessoas e a sociedade em que vivem. Por exemplo, considere a pessoa que quer mais riqueza do que é realmente boa para ela; ou a pessoa que se entrega aos apetites dos prazeres corporais. Tais pessoas certamente arruinarão suas próprias vidas e acabarão prejudicando as pessoas à sua volta.
O Que os Outros Têm o Direito de Esperar de Nós
Além disso, percebemos que a virtude da justiça é aquela que, dentre as três, versa sobre nosso relacionamento com outras pessoas, enquanto que a coragem e a temperança versam principalmente sobre hábitos que temos para conosco mesmo. Aristóteles sabiamente afirma que se todos os homens fossem amigos, a justiça não seria necessária. Se todos fôssemos amigos, não seria necessário formar o hábito da justiça pois, uma vez amigos, a preocupação para com os outros seria redundante e, afinal, desnecessária. Aristóteles também diz que a justiça é o elo que une os homens em Estados, já que nem todos os membros de uma sociedade são amigos entre si.
Em verdade, pertencemos a diversas associações e grupos organizados. Somos membros de uma família, mas podemos ser membros de um clube, escola, condomínio, empresa etc.
Podemos distinguir dois tipos de associações. Escolas, hospitais, empresas, clubes, universidades etc têm por objetivo servir a algum bem em particular. A família e o Estado não são assim. A família tem por objetivo o sustento da vida de seus membros e o Estado é uma sociedade que tem por objetivo enriquecer e aprimorar tais vidas. O que leva os homens a se agruparem em famílias e famílias a se agruparem em tribos e tribos a se agruparem em sociedades ainda maiores, segundo Aristóteles, são as vantagens obtidas dessas associações mais amplas e inclusivas. É importante lembrarmos que os homens não desejam apenas viver, mas viver bem – tão bem quanto possível. Sobreviver é uma condição indispensável para viver bem, mas insuficiente. Então, a família, a tribo e o Estado foram justamente as sociedades criadas para cumprir este fim.
Mas família, tribo e Estado não são como colméias, ou seja, não são como agrupamentos de outros animais. Todas as abelhas comportam-se similarmente e as colméias refletem tal comportamente similar. Diferentemente, as sociedades humanas existem em inúmeros tipos e estabelecem usos, costumes e leis as mais diversas. Assim, de acordo com Aristóteles, as sociedade humanas são, em sua origem, formadas naturalmente, voluntariamente e propositalmente, em vez de movidas apenas por instinto, como no caso dos animais.
É isso que Aristóteles quer dizer com “o homem é um animal político”. Observe que ele não diz que o homem é um animal social, mas político. O homem cria usos, costumes e leis dentro do contexto do Estado, e não apenas de famílias e tribos. Para vivermos bem, não basta vivermos em família. Temos de viver em cidades ou Estados (polis).
Cabe aqui voltarmos a versar sobre a justiça que une os homens. Quando dois homens são amigos, no sentido rigoroso do termo, eles se amam. Seu amor os impulsiona a desejar o bem do outro – a desejar o benefício do outro, a fazer o que for necessário para melhorar e enriquecer a vida do outro.
Numa sociedade, desde uma família até um país inteiro, raramente as pessoas se amam. Então, o que as manterá unidas não será amor, mas justiça. A justiça, assim como o amor, preocupa-se com o bem do próximo. Porém, há uma diferença essencial entre eles.
Quando nós amamos alguém, não damos à pessoa amada aquilo que ela tem o direito de exigir de nós. Ao contrário, nos entregamos generosamente e desinteressadamente, sem ligar para seu direito. Fazemos à pessoa amada mais do que ela tem o direito de esperar de nós. Às vezes, amamos quem não nos ama em retorno. Não fazemos questão de obter retorno de nosso amor. Mas quando agimos justamente para com outros, dando-lhes aquilo que têm o direito de esperar de nós, somos egoístas no sentido que queremos justiça em retorno.
Ora, mas o que os outros têm o direito de esperar de nós? Que não façamos nada que impeça ou obstrua o próximo de buscar sua felicidade, ou seja, que não façamos nada que impeça ou obstrua o próximo de obter ou possuir os bens reais de que precisam para viver bem.
E é aí que entra o Estado. São as leis instituídas pelo Estado que dirão aos membros daquela sociedade como devem fazer para agir justamente. Obviamente, há indivíduos que não têm a virtude da justiça, isto é, agem injustamente por hábito ou mesmo esporadicamente. É por isso que as leis devem ser impostas pelo Estado, para evitar que um indivíduo agrida outros, violando seus direitos.
A esta altura, talvez tenha lhe surgido uma dúvida. Se agir justamente significa não impedir ou obstruir a busca da felicidade do próximo, será que agir justamente também significa agirmos positivamente para ajudarmos o próximo em sua busca da felicidade? Segundo Aristóteles, a resposta é não. É a generosidade do amor, não as obrigações da justiça, que devem nos impulsionar a ajudar o próximo a obter os reais bens necessários para uma boa vida. No entanto, embora o Estado não deva obrigar os homens a agirem positivamente na promoção do bem-estar do próximo, as leis, sendo obedecidas, acabarão por indiretamente promover tal bem-estar.
O Que Temos o Direito de Exigir dos Outros?
O que temos o direito de exigir dos outros? Nossos direitos baseiam-se, conforme vimos, naquilo que é bom para qualquer ser humano pois atendem às necessidades inerentes à mesma natureza hunana. Se é assim, então você tem o direito de exigir dos outros o mesmo que os outros têm o direito de esperar de você.
Conforme vimos, as sociedades humanas – famílias, tribos, Estados – surgiram para ajudar os homens a atenderem suas necessidades comuns à sua natureza. É evidente que tais sociedades podem falhar em seus intentos, e mesmo impedir ativamente que os homens atendam suas necessidades.
Aristóteles percebeu que o Estado era necessário porque os homens não estão perfeitamente unidos em amor e nem são perfeitamente justos. Já que o Estado é necessário, segue que o Estado em si é bom. Mas quando um Estado deixa de ser bom e torna-se mau? Para Aristóteles, a linha que divide formas boas de formas ruins de governo é determinada pelas respostas à três perguntas:
Primeira, o governo serve o bem comum do povo governado? O governo que serve os interesses pessoais dos governantes é tirânico.
Segunda, o governo é ditado apenas pelas vontades dos governantes ou assenta-se sobre leis previamente elaboradas e aceitas pelos governados? O governo que governa pela força, seja por um ou vários homens, é despótico, mesmo que tal governo seja benevolente e bem-intencionado. O governo que não é despótico nem tirânico é chamado por Aristóteles de governo constitucional ou governo político (político no sentido de que é adequado para a polis, para as sociedades políticas, para os Estados).
Terceira, a respeito dos governos constitucionais, a constituição – a lei fundamental sobre a qual o governo em si é baseado – é justa? E as leis feitas por tal Estado são justas?
O melhor Estado, segundo Aristóteles, não limita-se apenas a ser um governo constitucional. Para ele, o melhor Estado é aquele que auxilia seus cidadãos na busca da felicidade. O Estado pode ajudar a superar as privações e falta de sorte de seus cidadãos, isto é, tudo aquilo que os cidadãos sofrem por causas fora de seu controle. O Estado pode, assim, auxiliá-los a superar tais sofrimentos e privações. Mas atenção: uma coisa que o Estado jamais poderá fazer é tornar seus cidadãos moralmente virtuosos, pois adquirir virtudes é algo que depende inteiramente das escolhas pessoais dos cidadãos. O Estado pode fornecer as condições que incentivem os cidadãos a serem moralmente virtuosos, eis tudo. Mas está nas mãos dos cidadãos fazer bom uso de tais condições.
Meios e Fins
Suponha que você tenha R$ 1.000,00 sobrando na sua conta corrente. O que fazer com eles? Talvez você precise consertar os armários da cozinha, e o dinheiro viria bem a calhar. Talvez você prefira fazer uma viagem ou matricular-se num curso de inglês. Ou ainda guardar o dinheiro para usá-lo numa emergência médica.
Como escolher a melhor opção? Qual critério ou critérios devemos utilizar em nossas escolhas?
Pensamentos desse tipo é o que chamamos de pensamento prático. Conforme vimos na parte anterior, o pensamento produtivo versa sobre coisas a serem produzidas. O pensamento prático, por outro lado, versa sobre nossas ações. Para produzirmos algo, vimos que são necessários dois fatores: idéias produtivas e know-how. No nosso agir, há também dois fatores: uma idéia da meta a ser alcançada e idéias sobre maneiras de alcançá-la. Esta é uma outra maneira de dizer que, no pensamento prático, temos um fim a ser alcançado e os respectivos meios que podemos empregar para alcançar tal fim.
Será que um meio é bom quando o fim a que se destina também é bom? Os meios são bons na medida em que nos ajudam a alcançar nossa meta, mas podem ter suas conseqüências negativas. Por exemplo, roubar é um meio para obter dinheiro para uma viagem, mas há conseqüências negativas no roubo que gostaríamos de evitar. Perceba que o meio que empregamos para obter dinheiro para a viagem acabou nos levando a um outro fim, indesejado: a cadeia.
Observe também que o roubo, além de meio, foi também um fim usado para outro fim, que é obter dinheiro para a viagem. Assim, fica claro que meios podem ser fins que temos de alcançar para alcançarmos outros fins e, similarmente, fins podem ser meios que temos de alcançar para outros fins.
Essa observação é interessante porque levanta dúvidas importantes (1) Será que há meios que são apenas meios, e nunca fins? e (2) Será que há fins que são apenas fins, e nunca meios? Outra maneira de formular as mesmas perguntas é (1) Há coisas que desejamos em prol de outras coisas e nunca em prol de si mesmas? e (2) Há coisas que desejamos em prol de si mesmas e nunca em prol de outras coisas?
Para responder a essas perguntas, vale à pena refletirmos um pouco sobre meios e fins. Ora, se todo fim fosse um meio para outro fim e este outro fim fosse um meio para ainda outro fim, indefinidamente, então o pensamento prático seria impossível! E se um meio for em si um fim que necessite de outro meio para alcançá-lo, então igualmente jamais poderíamos iniciar qualquer ação.
Portanto, deve haver fins que não são meios para outros fins. E deve haver meios que são puramente meios, não sendo fins que necessitem de outros meios para alcançá-los.
Viver e Viver Bem
E qual seria este fim que não é meio para outro fim? Em outras palavras, o que é um fim em si mesmo – um fim último – que não serve de meio para mais nada? Sócrates dizia que uma vida não examinada não vale à pena ser vivida. Aristóteles foi mais longe, dizendo que uma vida não planejada não vale à pena ser examinada, pois uma vida não planejada é aquela da qual não sabemos o que estamos tentando fazer, aonde pretendemos chegar nem o porquê. É uma confusão, uma bagunça.
Planos errados há muitos, mas somente um plano pode ser o plano certo. Se você adotar um dos planos errados então você acabará não tendo uma boa vida. Para ter uma boa vida, devemos vivê-la de acordo com o plano certo.
Não deixa de ser chocante falarmos de “plano certo”. Mas qual é o plano certo? O que faz desse plano ser o certo e todos os outros serem errados? O plano certo é aquele que almeja o fim último certo. E qual é este fim que todos buscamos, que torna o plano certo para todos nós? O fim certo que todos devemos buscar é uma boa vida. Perceba que viver bem é um fim em si mesmo, ou seja, viver bem não é um meio para outro fim.
A palavra que Aristóteles usa para viver bem é normalmente traduzida como felicidade. Felicidade é aquilo que todos buscamos. Ninguém, se perguntado por quê quer a felicidade, pode dar uma razão. Dar uma razão para querer a felicidade seria tratar a felicidade como meio para um outro fim. Mas não há esse outro fim. Não há nada além da felicidade.
Bom, Melhor, O Melhor
Esta descoberta não deixa de ser intrigante. Ora, há no mundo alguns bilhões de homens e mulheres, então como podemos dizer que há um e mesmo plano certo para viver bem e alcançar a felicidade para todas essas pessoas? É verdade que cada homem é um ser individual, com vida individual e experiências individuais. Mas também é verdade que todos os homens, enquanto membros da mesma espécie humana, participam de uma humanidade comum; há traços e atributos que são comuns a todos os homens.
As diferenças entre os homens são diferenças em grau. Por exemplo, uns enxergam melhor que outros, uns alimentam-se mais que outros, uns raciocinam melhor que outros. Estes exemplos servem para nos ajudar a constatar o fato que os homens possuem desejos que não são adquiridos ao longo da vida, mas que nascem com eles. Enxergar, alimentar-se e raciocinar, por exemplo.
Quando dizemos que precisamos de comida, dizemos que temos um desejo de comida. Quando dizemos que queremos um novo automóvel, também dizemos que temos um desejo de um novo automóvel. Essas duas palavras – “precisar” e “querer” – indicam desejos , mas não desejos do mesmo tipo.
Necessidades são desejos inatos – isto é, desejos que pertencem à nossa natureza humana pois são capacidades ou tendências comuns a todos nós.
Em um de seus mais importantes tratados, Aristóteles diz que o homem por natureza deseja conhecer. Em outras palavras, ele quer dizer que o desejo de conhecimento do homem é tão natural quanto o desejo de comida, com a diferença que a fome nos alerta quanto à falta de comida, enquanto que não há um mecanismo semelhante que nos alerte quanto à falta de conhecimento. E este fato não deve nos levar ao erro de achar que, como o desejo de conhecer não se manifesta, logo ele não existe.
Note que nossas necessidades (“precisar”) nunca estão erradas ou mal orientadas, mas nossas vontades (“querer”) frequentemente estão. Você não consegue ter uma necessidade errada.
Que fique clara, portanto, a distinção que Aristóteles faz entre desejos naturais (“precisar”) e desejos adquiridos (“querer”). E Aristóteles diz que o plano certo para alcançarmos a felicidade (boa vida) é um plano que contemple buscarmos e adquirirmos tudo aquilo que seja realmente bom possuirmos, ou seja, tudo aquilo que precisamos não apenas para viver mas para viver bem.
Dado que os desejos naturais são os mesmos em todos os homens, eis por que o plano certo para a felicidade é o mesmo para todos os homens. Todavia, sabemos que quando tais desejos naturais, ou necessidades, são minimamente satisfeitas, isso não basta para dizermos que “vivemos bem.”
Um plano é melhor que o outro na medida em que guia o indivíduo para uma realização mais completa de seus talentos e capacidades e para uma satisfação mais completa de suas necessidades. E o melhor plano de todos – o que temos de adotar – é aquele que almeja todos os bens reais na medida certa e na ordem certa e, além disso, que nos permita buscar as coisas que queremos mas não precisamos, contanto que obtê-las não signifique interferir na busca de nossas necessidades ou na realização de nossos talentos e capacidades.
Como Buscar a Felicidade
Afinal, quais os reais bens que todos devemos buscar? Se produzir bens é o fim, então os meios para atingi-lo são as idéias produtivas e o know-how, conforme vimos anteriormente. Mas no caso da felicidade, não há este se. Todos temos de buscar a felicidade, não conseguimos escapar disso. Mas como fazê-lo, afinal?
Aristóteles nos oferece duas respostas para essa pergunta. A primeira resposta consiste em enumerar os reais bens que todos necessitamos. A segunda resposta consiste numa prescrição para obtermos todos os bens reais que necessitamos ao longo da vida. A primeira é mais fácil de responder do que a segunda.
Primeira resposta. Na condição de animais, temos corpos que necessitam de certos cuidados. Como animais humanos, temos mentes que precisam ser exercitadas de dada maneira. Alguns dos bens reais que precisamos Aristóteles chama de bens corporais, tais como saúde, vitalidade e vigor. E dado que nossos sentidos nos permitem experimentar prazeres e dores corporais, Aristóteles também inclui tais prazeres dentre os bens reais. E para promover nossa saúde corporal, vitalidade e prazer, necessitamos de comida, bebida, habitação, vestuário e sono. Aristóteles agrega todas essas coisas em um termo: bens externos ou riqueza. Há ainda um terceiro tipo de bens que Aristóteles chama de bens da alma, que poderíamos também chamá-lo de bens psicológicos. O mais óbvio desses bens da alma são os bens da mente, tais como conhecimento, know-how e habilidades. Dentre as habilidades que todos precisamos, destaca-se a habilidade de pensar. Precisamos dela não somente fazer coisas bem feitas, mas também para agirmos bem e vivermos bem. Menos óbvio talvez sejam os bens da alma que necessitamos como animais sociais. Nós naturalmente desejamos amar outros seres humanos como desejamos ser amados por eles. Uma vida desprovida de amor – uma vida sem amigos – é uma vida desprovida de um bem altamente necessário.
Segunda resposta. Acima e além de todos os bens reais que mencionei acima, há mais uma classe de bens que necessitamos – bons hábitos; mais especificamente, bons hábitos de escolha. Por exemplo, possuir habilidade para jogar tênis é um bom hábito corporal, e possuir habilidade para resolver problemas matemáticos com facilidade é um bom hábito da mente; mas em contraste a esses hábitos, há aqueles que nos permitem tomar certas decisões com regularidade, com facilidade, sem termos de percorrer todo o processo de ponderação e reflexão novamente para só então escolhermos o melhor curso de ação. Aos bons hábitos Aristóteles chama de virtudes. Os bons hábitos relacionados a dons e habilidades chamamos de virtudes intelectuais. Os bons hábitos relacionados a comportamentos e caráter chamamos de virtudes morais. Ambos tipos de de virtudes são bens reais que necessitamos para uma boa vida. Mas as virtudes morais desempenham um papel especial em nossa busca da felicidade. Tão especial que Aristóteles nos diz que uma boa vida é aquela vivida por meio de escolhas ou decisões moralmente virtuosas.
Bons Hábitos e Boa Sorte
As escolhas e decisões que tomamos e que não nos deixam com remorsos são aquelas que contribuem para a busca da felicidade pois colocam os bens reais na ordem certa, limitando a quantia desses bens quando for necessário e pondo de lado as coisas que você quer em prol daquilo que você precisa.
Virtude moral é o hábito de tomar decisões certas. E o que devemos fazer para formamos esses hábitos? Por exemplo, se você quiser criar o hábito de chegar pontualmente em seus compromissos, terá de tentar ser pontual repetidamente, reiteradamente. Gradualmente, o hábito de ser pontual será formado. Uma vez formado, você terá disposição firme e resolvida de chegar na hora prometida. Quando mais forte o hábito, mais fácil será agir dessa maneira e mais difícil será quebrar o hábito, ou seja, agir de maneira contrária ao hábito. Você sentirá prazer ao fazer aquilo que está habituado, e não fazê-lo ou fazer o contrário do hábito será doloroso. E, observe, isso vale tanto para bons hábitos quanto para maus hábitos.
As virtudes morais, ou seja, os bons hábitos, são hábitos de tomar decisões certas entre bens reais e aparentes. Maus hábitos, que Aristóteles chamava de vícios, são hábitos de tomar decisões erradas. A pessoa virtuosa é aquela que toma decisões certas regularmente, embora não necessariamente sempre. Eis por que Aristóteles considera a virtude moral o meio principal para se alcançar a felicidade e a mais importante de todas as coisas que devemos possuir. Observe também que a virtude moral é um bem ilimitado, ou seja, não há como você ter virtude moral em excesso.
Temperança. Aristóteles ensina que uma das expressões da virtude moral é a temperança. A temperança consiste em habitualmente resistir a se entregar aos prazeres de todo tipo ou resistir às tentações de obter mais do que seria bom para nós em termos de bens limitados, como a riqueza por exemplo. Ter temperança significa resistir àquilo que parece bom a curto prazo em prol daquilo que realmente é bom a longo prazo.
Coragem. Outra expressão da virtude moral é a coragem. É similar à temperança, mas com uma diferença fundamental. Ter coragem significa ter disposição habitual em esforçar-se para fazer aquilo que temos de fazer em prol da boa vida. Estudar, aprender a tocar um instrumento musical, escrever bem ou pensar bem são atividades que envolvem práticas frequentemente maçantes, fatigantes. Evitar fazê-las em prol de um prazer momentâneo e fortuito, e fazer disso um hábito, é um vício que Aristóteles chama de covardia.
Temperança e coragem são semelhantes em um aspecto importante. Ambos são hábitos de escolher entre as coisas que parecem ser boas e as coisas que realmente são boas. Aristóteles também percebeu que é difícil para os jovens fixar o olhar em bens futuros e remotos em detrimento dos prazeres e dores presentes e imediatas.
E Aristóteles também nos alerta que possuir bons hábitos de escolha é requisito mas não é uma garantia. Mesmo de posse de todas as virtudes morais necessárias para uma boa vida, podemos falhar assim mesmo. Por que? Porque não estamos aptos a controlar as condições sob as quais nascemos e somos criados. Muito do que acontece conosco acontece por acaso ao invés de fruto de nossas escolhas. Boa sorte é tão necessário quanto bons hábitos.
Aristóteles resume tudo isso afirmando que obter sucesso em viver uma boa vida depende de duas coisas: possuir virtudes morais e ser abençoado com boa sorte (boa fortuna). Enquanto as virtudes morais impedem que caminhemos na direção errada e escolhamos coisas que não são realmente boas para nós, a boa fortuna nos supre de bens reais que não estariam de outra forma disponíveis a nós.
Dentre os bens que provêm da boa fortuna estão as coisas que dependem do ambiente físico e da sociedade que nascemos, crescemos e vivemos. Aristóteles não nos deixa esquecer que somos animais sociais além de organismos físicos. Ter uma boa família e viver numa boa sociedade são aspectos tão importantes quanto viver em meio a boas condições climáticas e ambientais (ter ar, água e outros recursos físicos disponíveis e de boa qualidade).
Justiça. Dado que não conseguimos viver em completa solidão, somos forçados a pensar no que temos de fazer para viver bem com as outras pessoas. Eis por que, além de coragem e temperança, Aristóteles considera a justiça como uma expressão da virtude moral. A justiça se preocupa com o bem dos outros, não apenas de nossos amigos, familiares e daqueles que amamos, mas de todo mundo.
É interessante notar que as três virtudes mencionadas são inseparáveis. As pessoas que não possuem temperança e coragem prejudicam a si mesmas ao habitualmente fazerem escolhas erradas. E pessoas que habitualmente fazem escolhas erradas também serão injustas e prejudicarão outras pessoas e a sociedade em que vivem. Por exemplo, considere a pessoa que quer mais riqueza do que é realmente boa para ela; ou a pessoa que se entrega aos apetites dos prazeres corporais. Tais pessoas certamente arruinarão suas próprias vidas e acabarão prejudicando as pessoas à sua volta.
O Que os Outros Têm o Direito de Esperar de Nós
Além disso, percebemos que a virtude da justiça é aquela que, dentre as três, versa sobre nosso relacionamento com outras pessoas, enquanto que a coragem e a temperança versam principalmente sobre hábitos que temos para conosco mesmo. Aristóteles sabiamente afirma que se todos os homens fossem amigos, a justiça não seria necessária. Se todos fôssemos amigos, não seria necessário formar o hábito da justiça pois, uma vez amigos, a preocupação para com os outros seria redundante e, afinal, desnecessária. Aristóteles também diz que a justiça é o elo que une os homens em Estados, já que nem todos os membros de uma sociedade são amigos entre si.
Em verdade, pertencemos a diversas associações e grupos organizados. Somos membros de uma família, mas podemos ser membros de um clube, escola, condomínio, empresa etc.
Podemos distinguir dois tipos de associações. Escolas, hospitais, empresas, clubes, universidades etc têm por objetivo servir a algum bem em particular. A família e o Estado não são assim. A família tem por objetivo o sustento da vida de seus membros e o Estado é uma sociedade que tem por objetivo enriquecer e aprimorar tais vidas. O que leva os homens a se agruparem em famílias e famílias a se agruparem em tribos e tribos a se agruparem em sociedades ainda maiores, segundo Aristóteles, são as vantagens obtidas dessas associações mais amplas e inclusivas. É importante lembrarmos que os homens não desejam apenas viver, mas viver bem – tão bem quanto possível. Sobreviver é uma condição indispensável para viver bem, mas insuficiente. Então, a família, a tribo e o Estado foram justamente as sociedades criadas para cumprir este fim.
Mas família, tribo e Estado não são como colméias, ou seja, não são como agrupamentos de outros animais. Todas as abelhas comportam-se similarmente e as colméias refletem tal comportamente similar. Diferentemente, as sociedades humanas existem em inúmeros tipos e estabelecem usos, costumes e leis as mais diversas. Assim, de acordo com Aristóteles, as sociedade humanas são, em sua origem, formadas naturalmente, voluntariamente e propositalmente, em vez de movidas apenas por instinto, como no caso dos animais.
É isso que Aristóteles quer dizer com “o homem é um animal político”. Observe que ele não diz que o homem é um animal social, mas político. O homem cria usos, costumes e leis dentro do contexto do Estado, e não apenas de famílias e tribos. Para vivermos bem, não basta vivermos em família. Temos de viver em cidades ou Estados (polis).
Cabe aqui voltarmos a versar sobre a justiça que une os homens. Quando dois homens são amigos, no sentido rigoroso do termo, eles se amam. Seu amor os impulsiona a desejar o bem do outro – a desejar o benefício do outro, a fazer o que for necessário para melhorar e enriquecer a vida do outro.
Numa sociedade, desde uma família até um país inteiro, raramente as pessoas se amam. Então, o que as manterá unidas não será amor, mas justiça. A justiça, assim como o amor, preocupa-se com o bem do próximo. Porém, há uma diferença essencial entre eles.
Quando nós amamos alguém, não damos à pessoa amada aquilo que ela tem o direito de exigir de nós. Ao contrário, nos entregamos generosamente e desinteressadamente, sem ligar para seu direito. Fazemos à pessoa amada mais do que ela tem o direito de esperar de nós. Às vezes, amamos quem não nos ama em retorno. Não fazemos questão de obter retorno de nosso amor. Mas quando agimos justamente para com outros, dando-lhes aquilo que têm o direito de esperar de nós, somos egoístas no sentido que queremos justiça em retorno.
Ora, mas o que os outros têm o direito de esperar de nós? Que não façamos nada que impeça ou obstrua o próximo de buscar sua felicidade, ou seja, que não façamos nada que impeça ou obstrua o próximo de obter ou possuir os bens reais de que precisam para viver bem.
E é aí que entra o Estado. São as leis instituídas pelo Estado que dirão aos membros daquela sociedade como devem fazer para agir justamente. Obviamente, há indivíduos que não têm a virtude da justiça, isto é, agem injustamente por hábito ou mesmo esporadicamente. É por isso que as leis devem ser impostas pelo Estado, para evitar que um indivíduo agrida outros, violando seus direitos.
A esta altura, talvez tenha lhe surgido uma dúvida. Se agir justamente significa não impedir ou obstruir a busca da felicidade do próximo, será que agir justamente também significa agirmos positivamente para ajudarmos o próximo em sua busca da felicidade? Segundo Aristóteles, a resposta é não. É a generosidade do amor, não as obrigações da justiça, que devem nos impulsionar a ajudar o próximo a obter os reais bens necessários para uma boa vida. No entanto, embora o Estado não deva obrigar os homens a agirem positivamente na promoção do bem-estar do próximo, as leis, sendo obedecidas, acabarão por indiretamente promover tal bem-estar.
O Que Temos o Direito de Exigir dos Outros?
O que temos o direito de exigir dos outros? Nossos direitos baseiam-se, conforme vimos, naquilo que é bom para qualquer ser humano pois atendem às necessidades inerentes à mesma natureza hunana. Se é assim, então você tem o direito de exigir dos outros o mesmo que os outros têm o direito de esperar de você.
Conforme vimos, as sociedades humanas – famílias, tribos, Estados – surgiram para ajudar os homens a atenderem suas necessidades comuns à sua natureza. É evidente que tais sociedades podem falhar em seus intentos, e mesmo impedir ativamente que os homens atendam suas necessidades.
Aristóteles percebeu que o Estado era necessário porque os homens não estão perfeitamente unidos em amor e nem são perfeitamente justos. Já que o Estado é necessário, segue que o Estado em si é bom. Mas quando um Estado deixa de ser bom e torna-se mau? Para Aristóteles, a linha que divide formas boas de formas ruins de governo é determinada pelas respostas à três perguntas:
Primeira, o governo serve o bem comum do povo governado? O governo que serve os interesses pessoais dos governantes é tirânico.
Segunda, o governo é ditado apenas pelas vontades dos governantes ou assenta-se sobre leis previamente elaboradas e aceitas pelos governados? O governo que governa pela força, seja por um ou vários homens, é despótico, mesmo que tal governo seja benevolente e bem-intencionado. O governo que não é despótico nem tirânico é chamado por Aristóteles de governo constitucional ou governo político (político no sentido de que é adequado para a polis, para as sociedades políticas, para os Estados).
Terceira, a respeito dos governos constitucionais, a constituição – a lei fundamental sobre a qual o governo em si é baseado – é justa? E as leis feitas por tal Estado são justas?
O melhor Estado, segundo Aristóteles, não limita-se apenas a ser um governo constitucional. Para ele, o melhor Estado é aquele que auxilia seus cidadãos na busca da felicidade. O Estado pode ajudar a superar as privações e falta de sorte de seus cidadãos, isto é, tudo aquilo que os cidadãos sofrem por causas fora de seu controle. O Estado pode, assim, auxiliá-los a superar tais sofrimentos e privações. Mas atenção: uma coisa que o Estado jamais poderá fazer é tornar seus cidadãos moralmente virtuosos, pois adquirir virtudes é algo que depende inteiramente das escolhas pessoais dos cidadãos. O Estado pode fornecer as condições que incentivem os cidadãos a serem moralmente virtuosos, eis tudo. Mas está nas mãos dos cidadãos fazer bom uso de tais condições.
3 de agosto de 2005
Aristóteles - Parte II
Parte II: Homem Produtor
O Crusoé de Aristóteles
Para sondarmos o homem enquanto produtor, é interessante primeiramente entendermos a diferença entre aquilo que chamamos de artificial e aquilo que chamamos de natural.
Pensemos no fogo, por exemplo. O fogo, em si, é algo inteiramente natural. Ele pode ocorrer durante tempestades numa floresta, onde os raios incidentes nas árvores podem causar o fogo. Trata-se de um evento natural. No entanto, se imaginarmos que esse fogo foi feito por alguém num piquenique, por exemplo, então sabemos que o fogo é artificial, produzido pelo homem.
Que o fogo produzido pelo homem num piquenique é artificial, isto nos parece claro. Mas imagine agora uma casa, produzida pelo mesmo homem. O fogo e a casa são ambos artificiais, você diria, mas será que são igualmente artificiais? Claro que não, afinal, o fogo é algo que pode acontecer na natureza, sem a ajuda do homem, mas jamais veríamos uma casa sendo criada pela natureza, sem qualquer intervenção humana. Chamemos então o fogo do piquenique de acontecimento artificial e a casa de produto artificial.
A casa é artificial porque foi produzida pelo homem, mas será que é totalmente artificial, isto é, totalmente criada pelo homem? Não, porque o homem criou a casa mas não a madeira de que ela é feita. A casa não foi feita do nada, mas da madeira. É por isso que chamamos a casa de produto artificial e não de criação artificial.
Considere agora um bebê, ou a prole de qualquer animal. Esse bebê é uma criação ou uma produção? Trata-se de uma questão importante. O bebê não é nem um evento natural como o fogo causado por raios incidentes em árvores, nem um acontecimento artificial como o fogo de um piquenique, nem um produto artificial como uma casa.
Ora, mas não seria o bebê também um acontecimento artificial? Afinal, os pais podem ter planejado o filho e isso faria dele um acontecimento artificial. Isso está correto até certo ponto, mas há um detalhe que pode ter lhe escapado: é verdade que o bebê, assim como o fogo de piquenique, pode ser planejado antecipadamente; contudo, o bebê também pode nascer sem planejamento algum por parte dos pais, coisa que não pode ocorrer com o fogo de piquenique. Não há fogo de piquenique que surja sem planejamento humano. Se um fogo surgir de repente num piquenique então ele não será um acontecimento artificial, mas um evento natural, como o fogo aceso por raios numa tempestade.
Parece então que o bebê, ou qualquer outro ser vivo, não se encaixa com perfeição em nenhuma das três categorias acima.
Vamos expandir um pouco mais esta percepção. Em vez de nos determos sobre a artificialidade ou naturalidade de produtos e acontecimentos, sondemos os movimentos e mudanças aos quais eles podem ser submetidos.
Mudança e Permanência
O mundo está preenchido por entidades em constante mudança. Olhamos à nossa volta e observamos pessoas, carros, equipamentos e dispositivos de toda sorte se movendo de lá para cá, daqui para ali. Pense em como este texto chegou às suas mãos e como você se movimenta, ao menos com os olhos, para lê-lo. Há muito movimento envolvido somente neste pequeno acontecimento. Entretanto, as diversas mudanças e movimentos não implicam em alterar por completo a entidade que se move. Por exemplo, você mudou bastante desde que era criança, mas continua sendo a mesma pessoa, isto é, você. A maçã que cai da árvore movimentou-se ao longo do trajeto, mudou de posição, mas apesar disso continua sendo o que é, uma maçã. Percebemos então que há algo permanente, que persiste, e algo que realmente muda no movimento.
A primeira mudança que nos vem à mente é a locomoção (mudança de lugar). O cair da maçã, o andar do carro, o rolar da bola, todos estes são exemplos clássicos de locomoção. Mas o que muda e o que permanece na locomoção? Fácil: o objeto que se locomove permanece o mesmo e a posição espacial dele é o elemento mutante. E veja que na locomoção cabem as mesmas categorias artificial e natural que discutimos à pouco. Uma maçã que cai é locomoção natural, um carro que anda é locomoção artificial.
Uma segunda mudança, um pouco menos óbvia mas também fácil de perceber, é a alteração (mudança de qualidade). Pense, por exemplo, no amadurecimento de um tomate. Ele era verde e tornou-se vermelho. Houve mudança de lugar? Não, o tomate permaneceu onde estava desde o início do processo de amadurecimento. Então que mudança houve? Uma mudança na qualidade, nas propriedades e características, do tomate. Novamente, as categorias artificial e natural cabem aqui. Um tomate que amadurece é alteração natural, uma casa sendo pintada pelo homem é uma alteração artificial.
Há uma terceira mudança, igualmente fácil de perceber, que podemos chamar simplesmente de mudança de quantidade. Similarmente, há mudanças de quantidade artificiais e naturais. Por exemplo, um balão de aniversário que inflamos é uma mudança de quantidade artificial. Um coelho que cresce conforme envelhece é uma mudança de quantidade natural.
Nos três tipos de mudança acima descritos, o ser que muda não deixa de ser ele mesmo. O balão de aniversário, mesmo cheio de ar quando antes era murcho, continua sendo o balão de aniversário. Mas há um quarto tipo de mudança sobre o qual raramente nos detemos e que é de suma importância.
Imagine o mesmo balão de aniversário. Conforme inflamos ar no seu interior, ele aumenta de tamanho. Suponha que continuemos a inflá-lo, cada vez mais. Num dado instante, o balão estoura e sobram apenas pedaços do balão. Não há mais balão. Esses rasgos de balão não são o mesmo balão que inflamos e decoramos o salão de festas.
Imagine o coelho do qual falamos acima. Ele cresce conforme envelhece, pára de crescer quando adulto, envelhece e morre. Pergunto: o corpo morto do coelho é o mesmo coelho que alimentamos com cenouras e que corre pelo campo? Não há mais coelho, mas apenas um cadáver de coelho.
Esse quarto tipo de mudança é chamado de mudança substancial. Ele é especial sob diversos aspectos. Por exemplo, o balão de aniversário que estourou, num dado instante, era um balão de aniversário e, no instante seguinte, não é mais. O coelho que morreu, num dado instante, era um coelho e, no instante seguinte, não é mais. Percebemos que essa quarta mudança ocorre instantaneamente, num lapso de tempo.
As Quatro Causas
As “quatro causas” são as respostas que Aristóteles dá às quatro perguntas sobre as mudanças ou movimentos acima descritos.
A primeira pergunta a respeito de qualquer produção humana é: Do quê é feita? Esta é a causa material. Por exemplo, a causa material de um sapato é o couro.
A segunda pergunta é: Quem a fez? Esta é a causa eficiente. Por exemplo, a causa eficiente de um sapato é o sapateiro ou as diversas pessoas envolvidas em sua produção.
A terceira pergunta é: O quê está sendo feito? Esta é a causa formal. Por exemplo, o próprio sapato é a causa formal de sua produção.
A quarta pergunta é: Para quê está sendo feito? ou Por quê está sendo feito? Esta é a causa final. Por exemplo, a causa final de um sapato é a proteção dos pés, proporcionar conforto ao caminhar etc.
As quatro causas são fatores indispensáveis que precisam estar presentes e operantes, seja o que for que o homem produza. Observe que, em si, as quatro causas são necessárias mas nenhuma delas, em si, é suficiente. Todas as quatro precisam estar presentes.
Quando transformamos matérias-primas em algo que elas não são – couro em sapatos, ouro em braceletes etc. – estamos lhes dando uma forma que elas não tinham anteriormente. No entanto, devemos tomar o cuidado de não confundirmos forma com o formato ou a figura de um objeto. Para dirimir um pouco esta confusão, consideremos uma bola de tênis rebatida por um jogador. Trata-se de um movimento. Qual a causa formal dele? Ora, o lugar para onde a bola foi rebatida é a causa formal da raquetada.
Algumas vezes, a causa final e a causa formal são a mesma causa. Por exemplo, se eu pinto esta cadeira de vermelho, a causa formal é a vermelhidão da cadeira, enquanto a causa final é combiná-la com outros móveis da minha sala. Por outro lado, não podemos dizer o mesmo de um tomate que se torna vermelho à medida que amadurece. Sua causa formal é a vermelhidão mas qual a causa final deste movimento? É, igualmente, a vermelhidão, já que dificilmente poderíamos dizer que a natureza torna o tomate vermelho como indício de que agora ele é comestível!
Das mudanças que analisamos até agora, percebemos facilmente que a mudança substancial distingue-se claramente das outras três (quantidade, qualidade, lugar). Ela é especial porque representa o vir-a-ser (coming to be) e o perecer (passing away) de uma coisa.
Ser ou Não Ser
Alguns pedaços de madeira largados num canto não são uma cadeira. Podemos dizer que falta a esses pedaços de madeira cadeireza de sua parte. Falta-lhes a forma de uma cadeira.
Além de lhes faltar cadeireza (forma de cadeira), os pedaços de madeira precisam ter a capacidade para adquirir a cadeireza. Chamemos essa capacidade de potencialidade.
Quando os pedaços de madeira tornam-se uma cadeira, sua potencialidade para assumir a forma de cadeira foi actualizada; e, evidentemente, não é mais uma potencialidade.
A madeira pode se tornar cadeira, mas ela não poderá se tornar uma lâmpada elétrica ou uma fonte de água. A matéria, que já tem em si uma dada forma, tem uma potencialidade limitada para adquirir outras formas.
Idéias Produtivas e Know-How
No entanto, quando o carpinteiro tomou os pedaços de madeira e transformou-os numa cadeira, ele tinha em mente alguma idéia da cadeira em particular que iria produzir. As idéias produtivas baseiam-se nas formas que a matéria pode assumir, suplementadas por pensamentos imaginativos tais como tamanhos, formatos, configurações etc.
Há duas maneiras para que uma idéia produtiva possa ser expressa. Por exemplo, um sujeito pode ter a idéia de uma casa a ser contruída e desenhar o projeto, enquanto outro sujeito executa o plano. O indivíduo que traçou o projeto é aquele que teve a idéia produtiva. O indivíduo que executou o projeto é aquele que teve o know-how. Note que idéias produtivas e know-how são fatores distintos na produção de coisas. A mente, as mãos e as ferramentas do artífice são, juntos, a causa eficiente da coisa produzida. Desses três fatores, a mente é o fator principal. É ela que tem a idéia produtiva e o know-how, sem os quais nem as mãos ou as ferramentas são capazes de executar. Os outros dois fatores (mãos, ferramentas) são fatores meramente instrumentais.
A palavra técnica vem do grego technikos, que Aristóteles usava ao referir-se a know-how. Em latim, a palavra utilizada era ars, que tornou-se arte. O artista é, portanto, aquele que domina a técnica, habilidade ou know-how para produzir coisas. Se, além do know-how, ele também tiver a idéia produtiva, então ele será chamado de artista criativo.
A arte como know-how deve existir no artista antes de ele produzir sua obra de arte. Assim, carpinteiros, cozinheiros, sapateiros e alfaiates são artistas, pois possuem know-how para produzir suas obras de arte. Mas e quanto a médicos, agricultores e professores, por exemplo? São eles artistas também? Sim, porque todos possuem certas habilidades e know-how que os qualificam como artistas. Porém, há uma diferença. Professores, médicos e agricultores são artistas cooperativos e não produtivos, uma vez que não é absolutamente necessária a presença de um professor para que adquiramos conhecimento. Similarmente, não é absolutamente necessária a presença de um agricultor para que tomateiros e macieiras nasçam, cresçam e dêem frutos. Em suma, professores, agricultores e médicos apenas ajudam, mas não criam.
Há obras de arte e obras de arte. Uma cadeira e uma estátua são ambas obras de arte, embora a abordagem que lhes damos seja diferente. Uma cadeira é usada, uma estátua é apreciada. Nós usamos algo quando o empregamos com certo propósito. Nós apreciamos algo quando nos satisfazemos com o prazer que extraímos ao percebê-lo de alguma maneira – seja observando, ouvindo ou lendo.
O prazer que extraímos de uma obra de arte tem a ver com aquilo que experimentamos como belo. Curioso é que uma cadeira também pode ser bela, embora não seja um objeto cujo propósito é a apreciação. De alguma forma, a cadeira nos parece bela porque é bem feita, mas não é somente isso que apreciamos numa estátua, por exemplo. Certamente, há algo de bem feito na estátua que lhe confere alguma beleza, mas isso não é tudo. Afinal, uma sopa ou uma camisa bem feitas são apreciadas pela grande maioria das pessoas exatamente por serem bem feitas. Mas e uma estátua? Ficaríamos surpresos se uma pessoa julgasse a estátua horrível enquanto outra a julgasse belíssima? Certamente não. Nas obras de arte apreciativas, a classificação de belo não é concorde na maioria das pessoas.
O Crusoé de Aristóteles
Para sondarmos o homem enquanto produtor, é interessante primeiramente entendermos a diferença entre aquilo que chamamos de artificial e aquilo que chamamos de natural.
Pensemos no fogo, por exemplo. O fogo, em si, é algo inteiramente natural. Ele pode ocorrer durante tempestades numa floresta, onde os raios incidentes nas árvores podem causar o fogo. Trata-se de um evento natural. No entanto, se imaginarmos que esse fogo foi feito por alguém num piquenique, por exemplo, então sabemos que o fogo é artificial, produzido pelo homem.
Que o fogo produzido pelo homem num piquenique é artificial, isto nos parece claro. Mas imagine agora uma casa, produzida pelo mesmo homem. O fogo e a casa são ambos artificiais, você diria, mas será que são igualmente artificiais? Claro que não, afinal, o fogo é algo que pode acontecer na natureza, sem a ajuda do homem, mas jamais veríamos uma casa sendo criada pela natureza, sem qualquer intervenção humana. Chamemos então o fogo do piquenique de acontecimento artificial e a casa de produto artificial.
A casa é artificial porque foi produzida pelo homem, mas será que é totalmente artificial, isto é, totalmente criada pelo homem? Não, porque o homem criou a casa mas não a madeira de que ela é feita. A casa não foi feita do nada, mas da madeira. É por isso que chamamos a casa de produto artificial e não de criação artificial.
Considere agora um bebê, ou a prole de qualquer animal. Esse bebê é uma criação ou uma produção? Trata-se de uma questão importante. O bebê não é nem um evento natural como o fogo causado por raios incidentes em árvores, nem um acontecimento artificial como o fogo de um piquenique, nem um produto artificial como uma casa.
Ora, mas não seria o bebê também um acontecimento artificial? Afinal, os pais podem ter planejado o filho e isso faria dele um acontecimento artificial. Isso está correto até certo ponto, mas há um detalhe que pode ter lhe escapado: é verdade que o bebê, assim como o fogo de piquenique, pode ser planejado antecipadamente; contudo, o bebê também pode nascer sem planejamento algum por parte dos pais, coisa que não pode ocorrer com o fogo de piquenique. Não há fogo de piquenique que surja sem planejamento humano. Se um fogo surgir de repente num piquenique então ele não será um acontecimento artificial, mas um evento natural, como o fogo aceso por raios numa tempestade.
Parece então que o bebê, ou qualquer outro ser vivo, não se encaixa com perfeição em nenhuma das três categorias acima.
Vamos expandir um pouco mais esta percepção. Em vez de nos determos sobre a artificialidade ou naturalidade de produtos e acontecimentos, sondemos os movimentos e mudanças aos quais eles podem ser submetidos.
Mudança e Permanência
O mundo está preenchido por entidades em constante mudança. Olhamos à nossa volta e observamos pessoas, carros, equipamentos e dispositivos de toda sorte se movendo de lá para cá, daqui para ali. Pense em como este texto chegou às suas mãos e como você se movimenta, ao menos com os olhos, para lê-lo. Há muito movimento envolvido somente neste pequeno acontecimento. Entretanto, as diversas mudanças e movimentos não implicam em alterar por completo a entidade que se move. Por exemplo, você mudou bastante desde que era criança, mas continua sendo a mesma pessoa, isto é, você. A maçã que cai da árvore movimentou-se ao longo do trajeto, mudou de posição, mas apesar disso continua sendo o que é, uma maçã. Percebemos então que há algo permanente, que persiste, e algo que realmente muda no movimento.
A primeira mudança que nos vem à mente é a locomoção (mudança de lugar). O cair da maçã, o andar do carro, o rolar da bola, todos estes são exemplos clássicos de locomoção. Mas o que muda e o que permanece na locomoção? Fácil: o objeto que se locomove permanece o mesmo e a posição espacial dele é o elemento mutante. E veja que na locomoção cabem as mesmas categorias artificial e natural que discutimos à pouco. Uma maçã que cai é locomoção natural, um carro que anda é locomoção artificial.
Uma segunda mudança, um pouco menos óbvia mas também fácil de perceber, é a alteração (mudança de qualidade). Pense, por exemplo, no amadurecimento de um tomate. Ele era verde e tornou-se vermelho. Houve mudança de lugar? Não, o tomate permaneceu onde estava desde o início do processo de amadurecimento. Então que mudança houve? Uma mudança na qualidade, nas propriedades e características, do tomate. Novamente, as categorias artificial e natural cabem aqui. Um tomate que amadurece é alteração natural, uma casa sendo pintada pelo homem é uma alteração artificial.
Há uma terceira mudança, igualmente fácil de perceber, que podemos chamar simplesmente de mudança de quantidade. Similarmente, há mudanças de quantidade artificiais e naturais. Por exemplo, um balão de aniversário que inflamos é uma mudança de quantidade artificial. Um coelho que cresce conforme envelhece é uma mudança de quantidade natural.
Nos três tipos de mudança acima descritos, o ser que muda não deixa de ser ele mesmo. O balão de aniversário, mesmo cheio de ar quando antes era murcho, continua sendo o balão de aniversário. Mas há um quarto tipo de mudança sobre o qual raramente nos detemos e que é de suma importância.
Imagine o mesmo balão de aniversário. Conforme inflamos ar no seu interior, ele aumenta de tamanho. Suponha que continuemos a inflá-lo, cada vez mais. Num dado instante, o balão estoura e sobram apenas pedaços do balão. Não há mais balão. Esses rasgos de balão não são o mesmo balão que inflamos e decoramos o salão de festas.
Imagine o coelho do qual falamos acima. Ele cresce conforme envelhece, pára de crescer quando adulto, envelhece e morre. Pergunto: o corpo morto do coelho é o mesmo coelho que alimentamos com cenouras e que corre pelo campo? Não há mais coelho, mas apenas um cadáver de coelho.
Esse quarto tipo de mudança é chamado de mudança substancial. Ele é especial sob diversos aspectos. Por exemplo, o balão de aniversário que estourou, num dado instante, era um balão de aniversário e, no instante seguinte, não é mais. O coelho que morreu, num dado instante, era um coelho e, no instante seguinte, não é mais. Percebemos que essa quarta mudança ocorre instantaneamente, num lapso de tempo.
As Quatro Causas
As “quatro causas” são as respostas que Aristóteles dá às quatro perguntas sobre as mudanças ou movimentos acima descritos.
A primeira pergunta a respeito de qualquer produção humana é: Do quê é feita? Esta é a causa material. Por exemplo, a causa material de um sapato é o couro.
A segunda pergunta é: Quem a fez? Esta é a causa eficiente. Por exemplo, a causa eficiente de um sapato é o sapateiro ou as diversas pessoas envolvidas em sua produção.
A terceira pergunta é: O quê está sendo feito? Esta é a causa formal. Por exemplo, o próprio sapato é a causa formal de sua produção.
A quarta pergunta é: Para quê está sendo feito? ou Por quê está sendo feito? Esta é a causa final. Por exemplo, a causa final de um sapato é a proteção dos pés, proporcionar conforto ao caminhar etc.
As quatro causas são fatores indispensáveis que precisam estar presentes e operantes, seja o que for que o homem produza. Observe que, em si, as quatro causas são necessárias mas nenhuma delas, em si, é suficiente. Todas as quatro precisam estar presentes.
Quando transformamos matérias-primas em algo que elas não são – couro em sapatos, ouro em braceletes etc. – estamos lhes dando uma forma que elas não tinham anteriormente. No entanto, devemos tomar o cuidado de não confundirmos forma com o formato ou a figura de um objeto. Para dirimir um pouco esta confusão, consideremos uma bola de tênis rebatida por um jogador. Trata-se de um movimento. Qual a causa formal dele? Ora, o lugar para onde a bola foi rebatida é a causa formal da raquetada.
Algumas vezes, a causa final e a causa formal são a mesma causa. Por exemplo, se eu pinto esta cadeira de vermelho, a causa formal é a vermelhidão da cadeira, enquanto a causa final é combiná-la com outros móveis da minha sala. Por outro lado, não podemos dizer o mesmo de um tomate que se torna vermelho à medida que amadurece. Sua causa formal é a vermelhidão mas qual a causa final deste movimento? É, igualmente, a vermelhidão, já que dificilmente poderíamos dizer que a natureza torna o tomate vermelho como indício de que agora ele é comestível!
Das mudanças que analisamos até agora, percebemos facilmente que a mudança substancial distingue-se claramente das outras três (quantidade, qualidade, lugar). Ela é especial porque representa o vir-a-ser (coming to be) e o perecer (passing away) de uma coisa.
Ser ou Não Ser
Alguns pedaços de madeira largados num canto não são uma cadeira. Podemos dizer que falta a esses pedaços de madeira cadeireza de sua parte. Falta-lhes a forma de uma cadeira.
Além de lhes faltar cadeireza (forma de cadeira), os pedaços de madeira precisam ter a capacidade para adquirir a cadeireza. Chamemos essa capacidade de potencialidade.
Quando os pedaços de madeira tornam-se uma cadeira, sua potencialidade para assumir a forma de cadeira foi actualizada; e, evidentemente, não é mais uma potencialidade.
A madeira pode se tornar cadeira, mas ela não poderá se tornar uma lâmpada elétrica ou uma fonte de água. A matéria, que já tem em si uma dada forma, tem uma potencialidade limitada para adquirir outras formas.
Idéias Produtivas e Know-How
No entanto, quando o carpinteiro tomou os pedaços de madeira e transformou-os numa cadeira, ele tinha em mente alguma idéia da cadeira em particular que iria produzir. As idéias produtivas baseiam-se nas formas que a matéria pode assumir, suplementadas por pensamentos imaginativos tais como tamanhos, formatos, configurações etc.
Há duas maneiras para que uma idéia produtiva possa ser expressa. Por exemplo, um sujeito pode ter a idéia de uma casa a ser contruída e desenhar o projeto, enquanto outro sujeito executa o plano. O indivíduo que traçou o projeto é aquele que teve a idéia produtiva. O indivíduo que executou o projeto é aquele que teve o know-how. Note que idéias produtivas e know-how são fatores distintos na produção de coisas. A mente, as mãos e as ferramentas do artífice são, juntos, a causa eficiente da coisa produzida. Desses três fatores, a mente é o fator principal. É ela que tem a idéia produtiva e o know-how, sem os quais nem as mãos ou as ferramentas são capazes de executar. Os outros dois fatores (mãos, ferramentas) são fatores meramente instrumentais.
A palavra técnica vem do grego technikos, que Aristóteles usava ao referir-se a know-how. Em latim, a palavra utilizada era ars, que tornou-se arte. O artista é, portanto, aquele que domina a técnica, habilidade ou know-how para produzir coisas. Se, além do know-how, ele também tiver a idéia produtiva, então ele será chamado de artista criativo.
A arte como know-how deve existir no artista antes de ele produzir sua obra de arte. Assim, carpinteiros, cozinheiros, sapateiros e alfaiates são artistas, pois possuem know-how para produzir suas obras de arte. Mas e quanto a médicos, agricultores e professores, por exemplo? São eles artistas também? Sim, porque todos possuem certas habilidades e know-how que os qualificam como artistas. Porém, há uma diferença. Professores, médicos e agricultores são artistas cooperativos e não produtivos, uma vez que não é absolutamente necessária a presença de um professor para que adquiramos conhecimento. Similarmente, não é absolutamente necessária a presença de um agricultor para que tomateiros e macieiras nasçam, cresçam e dêem frutos. Em suma, professores, agricultores e médicos apenas ajudam, mas não criam.
Há obras de arte e obras de arte. Uma cadeira e uma estátua são ambas obras de arte, embora a abordagem que lhes damos seja diferente. Uma cadeira é usada, uma estátua é apreciada. Nós usamos algo quando o empregamos com certo propósito. Nós apreciamos algo quando nos satisfazemos com o prazer que extraímos ao percebê-lo de alguma maneira – seja observando, ouvindo ou lendo.
O prazer que extraímos de uma obra de arte tem a ver com aquilo que experimentamos como belo. Curioso é que uma cadeira também pode ser bela, embora não seja um objeto cujo propósito é a apreciação. De alguma forma, a cadeira nos parece bela porque é bem feita, mas não é somente isso que apreciamos numa estátua, por exemplo. Certamente, há algo de bem feito na estátua que lhe confere alguma beleza, mas isso não é tudo. Afinal, uma sopa ou uma camisa bem feitas são apreciadas pela grande maioria das pessoas exatamente por serem bem feitas. Mas e uma estátua? Ficaríamos surpresos se uma pessoa julgasse a estátua horrível enquanto outra a julgasse belíssima? Certamente não. Nas obras de arte apreciativas, a classificação de belo não é concorde na maioria das pessoas.
* * *
Do que vimos até aqui, conhecimento e entendimento (ou, poderíamos dizer, a filosofia) têm sido empregados na produção de coisas. Mas conhecimento e entendimento também podem orientar nossas vidas e gerenciar nossas sociedades. Há, assim, um uso prático e não apenas produtivo da filosofia, isto é, a filosofia pode ser empregada não apenas para produzir mas também para agir. E isto é assunto para a próxima parte.
Aristóteles - Parte I
Parte I: Homem, o Animal Filosófico
Introdução
Por que deveríamos aprender a pensar filosoficamente? Segundo Mortimer J. Adler, o estudo da Filosofia nos ajuda a entender as coisas que já sabemos e entendê-las melhor. E ninguém melhor do que Aristóteles para nos ajudar nessa tarefa. Aristóteles formulou as grandes perguntas que têm ocupado os filósofos ao longo das gerações e, além disso, procurou respondê-las. Não pense o leitor mais orgulhoso que, só porque vivemos no século XXI cercados de bens materiais sofisticados, um homem do século III a.C. não teria nada a nos ensinar. Afinal, Aristóteles esteve cercado das mesmas experiências básicas às quais estamos expostos hoje.
O pensamento filosófico se inicia quando fazemos perguntas. Essas perguntas podem ser respondidas com base em nossas experiências pessoais ou por meio de reflexões sobre essas experiências, resultando num aprimoramento de nosso senso comum.
Ao observar o mundo, constatamos que cada coisa possui uma natureza que a distingue das outras. Pois aquilo que diferencia uma classe de coisas do resto é precisamente o que define a sua natureza. Por exemplo, quando falamos de “natureza humana”, o que queremos dizer é que todos os humanos possuem certas características em comum que definem sua natureza, diferenciando-as dos outros seres vivos.
As diferenças menores e superficiais Aristóteles chamou de acidentais, enquanto as diferenças maiores e importantes ele chamou de essenciais. Por exemplo, homens e animais são essencialmente diferentes, enquanto homens baixinhos, gordos, altos e magros são acidentalmente diferentes.
A Grande Divisão
Quando pensamos nos diversos objetos do universo, somos tentados a dividí-los entre seres inanimados e animados e, este último, entre seres do reino animal, vegetal e mineral. É uma classificação que aprendemos na escola e, sob certos aspectos, funciona muito bem. Poderíamos continuar subdividindo estas classes de coisas em, por exemplo, mamíferos, ovíparos, anfíbios, répteis, plantas aquáticas, flores, pedras preciosas etc.
Todavia, não há no universo somente objetos físicos a serem pensados. Há muito mais. Por exemplo, podemos pensar em objetos matemáticos, deuses ou Deus, espíritos, idéias, teorias, mentes, seres mitológicos etc. A linha que divide os seres físicos desses outros seres é o que podemos chamar de grande divisão.
Considerando por enquanto apenas os objetos físicos, Aristóteles traçou uma linha que divide seus constituintes em dois grandes tipos. De um lado, há os corpos, do outro há seus atributos ou características (odores, cores etc.). Qual a diferença entre um corpo e seu atributo? Simples: os corpos são sempre mutáveis enquanto os atributos não. Pense numa pedra, por exemplo. Ela permanece sendo o que é, uma pedra, mas ao mesmo tempo pode mudar de uma forma ou de outra (em tamanho ou peso, por exemplo). Você pode estar pensando: “Ok, mas o que mudou aí foram os atributos da pedra (tamanho, peso, cor) e você me disse que os atributos são imutáveis!” Pense de novo. Por exemplo, uma pedra verde se transformou em vermelha. Observe, o verde sempre continuará sendo verde, independente do ser ao qual ele é atribuído. Verde é verde. Mas a pedra verde se transformou em pedra vermelha. Foi a pedra que mudou, não seu atributo.
Aristóteles enumerou os principais atributos a respeito dos quais os corpos mudam. Vejamos:
- quantidade, quando os corpos aumentam ou diminuem de tamanho ou peso.
- qualidade, quando os corpos alteram sua cor, formato ou textura.
- posição ou lugar, quando os corpos movem-se de lá para cá.
Podemos pensar em outros atributos. Mas o importante a aprendermos aqui é o seguinte: de todos os atributos de um corpo físico, os mais importantes são aqueles que permanecem ao longo da existência desse corpo físico. São esses atributos que fazem da coisa aquilo que ela é. Por exemplo, é um atributo permanente dos metais que eles conduzam eletricidade; é um atributo permanente dos sais que eles se dissolvam na água; é um atributo permanente dos mamíferos que eles dêem de mamar aos seus filhotes.
O homem também possui atributos permanentes. Por exemplo, a própria capacidade de estabelecer os pensamentos contidos neste artigo é um atributo humano. Mas o homem não é apenas um corpo físico. Observe que, freqüentemente, chamamos outros seres humanos de “pessoas”, coisa que não fazemos com aranhas, cães ou tatus-bola. Isso quer dizer que o homem é também uma coisa, mas uma coisa diferente da coisa que é uma maçã ou uma aranha.
As Três Dimensões do Homem
Se o homem fosse uma coisa como a maçã é uma coisa, suas três dimensões seriam as mesmas de uma maçã: comprimento, altura e profundidade. Mas o homem é um tipo especial de coisa que chamamos de pessoa, e como tal possui três dimensões que lhe são peculiares: produzir, agir e conhecer.
Na primeira dimensão, produzir, temos o homem como artista ou artesão, produtor de toda sorte de coisas: sapatos, navios, casas, música, pintura etc.
Na segunda dimensão, agir, temos o homem como ser social e moral, como alguém que age correta ou incorretamente.
Na terceira dimensão, conhecer, temos o homem como aprendiz, que adquire todo tipo de conhecimento.
Há três palavras, talvez as palavras mais difíceis do nosso vocabulário, que estão diretamente relacionadas com as três dimensões do homem. São elas verdade, bondade e beleza. A beleza está relacionada com a primeira dimensão, a bondade com a segunda e a verdade com a terceira.
Introdução
Por que deveríamos aprender a pensar filosoficamente? Segundo Mortimer J. Adler, o estudo da Filosofia nos ajuda a entender as coisas que já sabemos e entendê-las melhor. E ninguém melhor do que Aristóteles para nos ajudar nessa tarefa. Aristóteles formulou as grandes perguntas que têm ocupado os filósofos ao longo das gerações e, além disso, procurou respondê-las. Não pense o leitor mais orgulhoso que, só porque vivemos no século XXI cercados de bens materiais sofisticados, um homem do século III a.C. não teria nada a nos ensinar. Afinal, Aristóteles esteve cercado das mesmas experiências básicas às quais estamos expostos hoje.
O pensamento filosófico se inicia quando fazemos perguntas. Essas perguntas podem ser respondidas com base em nossas experiências pessoais ou por meio de reflexões sobre essas experiências, resultando num aprimoramento de nosso senso comum.
Ao observar o mundo, constatamos que cada coisa possui uma natureza que a distingue das outras. Pois aquilo que diferencia uma classe de coisas do resto é precisamente o que define a sua natureza. Por exemplo, quando falamos de “natureza humana”, o que queremos dizer é que todos os humanos possuem certas características em comum que definem sua natureza, diferenciando-as dos outros seres vivos.
As diferenças menores e superficiais Aristóteles chamou de acidentais, enquanto as diferenças maiores e importantes ele chamou de essenciais. Por exemplo, homens e animais são essencialmente diferentes, enquanto homens baixinhos, gordos, altos e magros são acidentalmente diferentes.
A Grande Divisão
Quando pensamos nos diversos objetos do universo, somos tentados a dividí-los entre seres inanimados e animados e, este último, entre seres do reino animal, vegetal e mineral. É uma classificação que aprendemos na escola e, sob certos aspectos, funciona muito bem. Poderíamos continuar subdividindo estas classes de coisas em, por exemplo, mamíferos, ovíparos, anfíbios, répteis, plantas aquáticas, flores, pedras preciosas etc.
Todavia, não há no universo somente objetos físicos a serem pensados. Há muito mais. Por exemplo, podemos pensar em objetos matemáticos, deuses ou Deus, espíritos, idéias, teorias, mentes, seres mitológicos etc. A linha que divide os seres físicos desses outros seres é o que podemos chamar de grande divisão.
Considerando por enquanto apenas os objetos físicos, Aristóteles traçou uma linha que divide seus constituintes em dois grandes tipos. De um lado, há os corpos, do outro há seus atributos ou características (odores, cores etc.). Qual a diferença entre um corpo e seu atributo? Simples: os corpos são sempre mutáveis enquanto os atributos não. Pense numa pedra, por exemplo. Ela permanece sendo o que é, uma pedra, mas ao mesmo tempo pode mudar de uma forma ou de outra (em tamanho ou peso, por exemplo). Você pode estar pensando: “Ok, mas o que mudou aí foram os atributos da pedra (tamanho, peso, cor) e você me disse que os atributos são imutáveis!” Pense de novo. Por exemplo, uma pedra verde se transformou em vermelha. Observe, o verde sempre continuará sendo verde, independente do ser ao qual ele é atribuído. Verde é verde. Mas a pedra verde se transformou em pedra vermelha. Foi a pedra que mudou, não seu atributo.
Aristóteles enumerou os principais atributos a respeito dos quais os corpos mudam. Vejamos:
- quantidade, quando os corpos aumentam ou diminuem de tamanho ou peso.
- qualidade, quando os corpos alteram sua cor, formato ou textura.
- posição ou lugar, quando os corpos movem-se de lá para cá.
Podemos pensar em outros atributos. Mas o importante a aprendermos aqui é o seguinte: de todos os atributos de um corpo físico, os mais importantes são aqueles que permanecem ao longo da existência desse corpo físico. São esses atributos que fazem da coisa aquilo que ela é. Por exemplo, é um atributo permanente dos metais que eles conduzam eletricidade; é um atributo permanente dos sais que eles se dissolvam na água; é um atributo permanente dos mamíferos que eles dêem de mamar aos seus filhotes.
O homem também possui atributos permanentes. Por exemplo, a própria capacidade de estabelecer os pensamentos contidos neste artigo é um atributo humano. Mas o homem não é apenas um corpo físico. Observe que, freqüentemente, chamamos outros seres humanos de “pessoas”, coisa que não fazemos com aranhas, cães ou tatus-bola. Isso quer dizer que o homem é também uma coisa, mas uma coisa diferente da coisa que é uma maçã ou uma aranha.
As Três Dimensões do Homem
Se o homem fosse uma coisa como a maçã é uma coisa, suas três dimensões seriam as mesmas de uma maçã: comprimento, altura e profundidade. Mas o homem é um tipo especial de coisa que chamamos de pessoa, e como tal possui três dimensões que lhe são peculiares: produzir, agir e conhecer.
Na primeira dimensão, produzir, temos o homem como artista ou artesão, produtor de toda sorte de coisas: sapatos, navios, casas, música, pintura etc.
Na segunda dimensão, agir, temos o homem como ser social e moral, como alguém que age correta ou incorretamente.
Na terceira dimensão, conhecer, temos o homem como aprendiz, que adquire todo tipo de conhecimento.
Há três palavras, talvez as palavras mais difíceis do nosso vocabulário, que estão diretamente relacionadas com as três dimensões do homem. São elas verdade, bondade e beleza. A beleza está relacionada com a primeira dimensão, a bondade com a segunda e a verdade com a terceira.
Aristóteles - Introdução
Mortimer J. Adler nunca escondeu sua admiração por Aristóteles. Desde seu famoso How to Read a Book até seus livros mais densos como Dialectic e The Difference of Man and The Difference It Makes, Aristóteles é citado por Adler inúmeras vezes. Solicitado a palestrar sobre Aristóteles por todo o território americano, Adler resolveu condensar os ensinamentos e idéias do mestre grego num livreto que poderia ser lido por praticamente qualquer pessoa. A despeito do título prosaico, Aristotle For Everybody é uma mina de ouro para aqueles que dão seus primeiros passos no campo da Filosofia.
O texto que segue é um resumo do livro para fins pessoais, mas espero possa ser aproveitado por você.
Dados gerais
Título: Aristotle For Everybody (Aristóteles Para Todos)
Autor: Mortimer J. Adler
Editora: Touchstone Book
Ano de publicação: 1978
Edição em língua portuguesa: não há
O texto que segue é um resumo do livro para fins pessoais, mas espero possa ser aproveitado por você.
Dados gerais
Título: Aristotle For Everybody (Aristóteles Para Todos)
Autor: Mortimer J. Adler
Editora: Touchstone Book
Ano de publicação: 1978
Edição em língua portuguesa: não há